Caso Marielle: 'Ninguém bota a cara como minha filha fez', diz mãe de vereadora, um ano após assassinato
"É uma dor que você tem todo dia, toda hora", descreve Marinete da Silva, mãe da vereadora Marielle Franco. "É muito triste imaginar que a minha menina foi executada com uma brutalidade daquelas sem, saber por quê."
No ano que se passou desde o assassinato da vereadora do PSOL e do motorista Anderson Gomes, Marinete diz que a vida da família mudou completamente. "O que não muda é a nossa dor", diz Marinete à BBC News Brasil.
Nos últimos doze meses, o pequeno núcleo familiar de Marielle - seus pais, sua filha, sua irmã e sua viúva, Monica Benício - tem se engajado em uma rotina de constante mobilização e cobrança pela solução do assassinato, enquanto busca seguir a vida, estudos, trabalho, sustento.
O caso acaba de ter um desdobramento crucial nesta semana, com a prisão, na terça-feira, de dois ex-PMs acusados de terem executado o crime. São eles o sargento reformado Ronnie Lessa, que teria sido o autor dos disparos mirando o carro da vereadora; e o ex-sargento Élcio Vieira de Queiroz (expulso da corporação por ligações com o jogo do bicho), que estaria conduzindo o Cobalt usado no ataque, de acordo com as investigações da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público Estadual.
"Foi um avanço, mas ainda há muita coisa para fazer", considera Marinete. "A gente precisa saber quem foram os mandantes. Precisa prender quem mandou matar. Não é só por nós. É para responder às cobranças do mundo."
Marielle Franco foi executada na noite de 14 de março de 2018 no Rio depois de mediar um debate sobre o empoderamento de mulheres negras na Casa das Pretas, na Lapa.
De acordo com o Gaeco/MPRJ, a empreitada criminosa foi "meticulosamente planejada durante os três meses que antecederam o atentado".
"É inconteste que Marielle Francisco da Silva [nome de batismo da vereadora] foi sumariamente executada em razão da atuação política na defesa das causas que defendia", descreve a denúncia do MPRJ, classificando o atentado como um "golpe ao Estado Democrático de Direito".
Cartas exigem soluções
As cobranças e expressões de solidariedade vêm em cartas do mundo todo. Na Anistia Internacional do Rio, há caixas de cartas endereçadas à família. Muitas outras foram enviadas à Delegacia de Homicídios por pessoas e organizações de direitos humanos mundo afora.
"O Giniton (Lages, delegado responsável pelas investigações da Polícia Civil até quarta-feira, quando foi afastado do caso) me mostrou as pilhas de cartas que ele recebe. Todo dia chegam mais cartas", conta Marinete.
"Não é só a gente que precisa de uma resposta. Esse é um compromisso com o mundo todo, com o Brasil e com a sociedade, que perdeu muito com a morte da minha filha. Todos os grupos aos quais ela dava voz perderam muito."
"Ninguém faz o que ela fazia. Ninguém bota a cara com a minha filha fez", diz a mãe.
Negra, lésbica, feminista, "cria da favela" e defensora de direitos humanos, Marielle estava no segundo ano de seu primeiro mandato como vereadora.
O aniversário de sua morte será marcado com uma missa na Candelária, no Centro do Rio, igreja simbólica de muitas lutas e passeatas das quais Marielle participou, e de seu engajamento para ajudar familiares de vítimas de violência, como as mães dos mortos na chacina ocorrida na escadaria da igreja em 1993. "Ela participou de anos de caminhadas em prol de vítimas de violência da barbaridade que aconteceu ali", diz Marinete.
Rotina de luta
Marielle era mulher de Monica, filha de Marinete e Antonio, mãe de Luyara, irmã de Anielle e madrinha de Mariah, sua sobrinha. Morava com Monica, de quem ficara noiva um ano antes, e com a filha, Luyara, que tem 20 anos e nasceu quando a mãe tinha apenas 19.
Depois da morte da mãe, Luyara passou a viver com os avós. A jovem iniciou a universidade de Educação Física e acaba de começar a trabalhar no gabinete da deputada estadual Renata Souza, do PSOL. Renata integrava o gabinete de Marielle na Câmara dos Vereadoras e foi eleita no ano passado como uma das "herdeiras" políticas de Marielle.
"O que ocorreu com ela foi um feminicídio político", diz a deputada, que, como Marielle, também é cria da favela, do Complexo da Maré.
"Até hoje não tem resolução porque o Estado não conseguiu compreender o tamanho do que é a execução sumária de uma vereadora como a Marielle", critica a parlamentar. "Não entendeu que é uma afronta direta à democracia. Esse crime bárbaro, covarde, desumano tem a ver com alguma estrutura de poder que as investigações ainda não trouxeram à luz."
Marinete diz que a rotina tem sido dura, tendo que conciliar o engajamento em torno do assassinato da filha com o trabalho para sustentar a casa. Ela é advogada, atuando nas áreas cível e previdenciária, e seu marido, Antonio Francisco da Silva, é aposentado.
"A gente continua trabalhando muito e está sempre na luta. Não temos outros meios para manter o nosso sustento a não ser o nosso próprio trabalho. Somos uma família humilde, a Marielle ajudava em casa (financeiramente), então até nesse sentido a falta dela pesa. Eu mantenho toda a estrutura da minha casa há muito tempo, e não posso desanimar. Em momento nenhum posso fracassar. Tenho que continuar lutando", diz Marinete.
'Anderson presente'
Na casa de Agatha Arnaus Reis, a vida mudou completamente após a morte de seu marido, Anderson Pedro Gomes aos 39 anos.
Na época do assassinato, Anderson estava substituindo o motorista fixo de Marielle, que se acidentara. Naquela noite, os tiros que partiram do Cobalt mirando a janela do banco de trás onde a vereadora estava sentada atravessaram o carro na diagonal e atingiram Anderson na direção.
Agatha ficou viúva aos 27 anos, sozinha para cuidar do filho do casal, Arthur.
Um ano depois da morte do marido, ela passa pouco tempo na casa onde viviam. Nos dias da semana, prefere ficar morando com a mãe e a irmã, em Inhaúma, na zona norte do Rio, para ter companhia e poder dividir os cuidados com Arthur, que tem quase 3 anos. O filho nasceu prematuro, teve que passar por uma série de cirurgias e sofre de atraso no desenvolvimento e hipotireoidismo.
"A minha família ajuda muito para que eu possa continuar trabalhando e levar ele para a escolinha", diz Agatha, que é servidora pública e está alocada no Ministério Público do Rio. "Eu dividia tudo com o Anderson."
Em setembro, Agatha teve um "susto tremendo". Arthur teve uma obstrução intestinal e precisou passar por uma cirurgia de emergência. "Quando eu estava sozinha no hospital, correndo com bolsa, leite, exames, com ele no colo, vomitando sem parar, a ficha caiu", diz. "Agora é tudo comigo."
Ela diz ter ficado impactada pelas prisões dos suspeitos de terem executado o crime. Mas ressalta as perguntas que exigem resposta.
"A gente precisa saber quem mandou matar e por quê. Não podemos ficar sem essa resposta. Isso pesa muito. Um dia o Arthur vai me perguntar, e o que eu vou falar para ele?", questiona.
"Tem que ter um fim. Até lá, é como se a gente ficasse sempre revivendo aquele dia", diz a viúva de Anderson. "Só quando chegar no final é que a gente vai poder terminar de enterrar (os mortos)."
*Colaborou Rafael Barifouse, da BBC News Brasil, em São Paulo
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