Musa e madrinha do Carandiru, Rita Cadillac ainda encontra ex-detentos nas ruas de SP
“Oi, madrinha. Como vai, madrinha?”. Os ‘afilhados’ são ex-detentos do complexo penitenciário do Carandiru. A ‘madrinha’ é a dançarina e cantora Rita Cadillac, 59, que, talvez para muitos da extinta casa de detenção, a figura de musa coubesse melhor no imaginário que o de figura maternal.
Memórias do Carandiru têm calcinha da Rita e pilha de corpos
O maior presídio da América Latina foi desativado em 2002, dez anos após o incidente que marcou sua história. No dia 2 de outubro de 1992, 111 presidiários morreram depois da entrada da Polícia Militar na Casa de Detenção; os policiais tinham sido chamados para conter uma rebelião no pavilhão 9. Testemunhos de quem acompanhou o cotidiano dos presos e os momentos seguintes à ocupação mantêm viva a memória do Carandiru.
Passados quase 11 anos do fim da unidade prisional, o ambiente para esse diálogo são as ruas de São Paulo, cidade que a carioca Rita escolheu para viver, após uma "adaptação" no litoral sul paulista. Há três anos, deixou Praia Grande, na Baixada Santista, pelo bairro de Santa Cecília, área central da capital.
“Até hoje, quando algum ex-detento, livre ou não, me vê na rua, diz: ‘oi, madrinha’. Sempre os tratei com respeito, com alegria, e ainda trato, quando há esse reencontro”, conta Rita, que fez amizades que extrapolaram os pavilhões do Carandiru. “Fui madrinha nas formaturas de vários internos lá dentro e sou madrinha de filhos de quatro ou cinco deles, aqui fora. As lembranças que tenho do presídio são alegres: eu tinha respeito, as pessoas gostavam de mim, e, em troca da minha atenção, me davam carinho”.
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Rita recebeu o UOL no apartamento em que vive com Angel Maria, uma poodle preta de 11 anos que trata como 'filha". Diabética, a cachorra recebe insulina duas vezes por dia. “Ela que me acorda todo dia às 6h30 para que eu a leve para passear. E como estou de regime e ela é diabética, acaba entrando [no regime] também”, conta.
Alçada à fama no Programa do Chacrinha, nos anos 1980, a dançarina hoje faz shows onde a convidarem. “Esses dias a mulher de um juiz me contratou para ser a surpresa para o marido na festa de aniversário dele. Aqui em São Paulo!”, lembra. “De inauguração de cemitério a festa, show, balada, eu faço”, brinca.
18 anos de relação com o Carandiru
A história no Carandiru começou em 1984, quando foi convidada pela direção do presídio para uma festa de Natal aos presos. Não queria ir, de início, mas era obrigada por força de contrato com a gravadora à qual era vinculada. Foi, gostou e voltou outras vezes --até a implosão do presídio, em 2002, 18 anos depois.
Coronel Ubiratan
Nas apresentações --que renderam menção no filme “Carandiru”, de Hector Babenco, e no documentário "Rita Cadillac - A Lady do Povo", de Toni Venturi --, brincava com os detentos e depois passava longos minutos, diz, “conversando amenidades” com eles.
“Claro que 99,9% dizia para mim que não tinha motivo para estar ali; eu dizia: ‘Tá, então você é trouxa de estar aqui, né?’. No geral tinham saudades da família, que abandonava muitos ali, e eu era muito perguntada sobre o Chacrinha. Mas eram seres humanos, e acho que de alguma maneira eu os ajudava a esquecer, por algum momento, que estavam naquele lugar”.
"Shows garantiam calmaria por 15, 20 dias no presídio"
O sintoma de que os presos se esqueceriam ao menos um tempo do ambiente insalubre do Carandiru –à época do massacre de 111 detentos, em outubro de 1992, eram mais de 7.000 internos, o dobro da capacidade --, por sinal, teriam sido relatados pelos próprios diretores do presídio à dançarina. No período de 15 a 20 dias seguintes a cada apresentação, diz, era calmaria na unidade.
Indagada se sente segurança para fazer, hoje, as apresentações em presídios que fazia na época do Carandiru –mesmo com a realidade das facções criminosas --, Rita garante que sim.
“Faço, sem medo. Mas hoje a secretaria não deixa mais shows desse tipo”.
Depois do massacre, presos tinham "medo, revolta"
No dia da rebelião que antecedeu o massacre, ela não foi ao Carandiru. “Eu morava ali perto, nessa época, em Santana (zona norte). Vi pela TV. Doeu. Não sei o que levou os policiais a usarem aquela força toda, mas não precisava entrar matando. Teve preso morto já dentro da cela. Conheço alguns que morreram”, diz.
A dançarina voltou à casa de detenção cerca de três meses após o massacre. Sentiu os presos ressabiados; alguns ainda estavam machucados, doentes, e celas seguiam quebradas. “Era uma sensação muito estranha, uma carga muito pesada no ar. Era como se os presos sentissem medo, revolta... a partir dali, notei que muita coisa com eles ficou diferente”, resume.
No dia da implosão, 17 de julho de 2002, a dançarina esteve lá a convite das autoridades. Qual foi a impressão? “Aquilo era uma bomba que estava para explodir a qualquer momento (...). Mas o fim foi horrível – foram anos meus e memórias muito boas também que foram ali junto na implosão”.
Que escala de valor ela atribui às carreiras de chacrete e de “musa dos internos” do Carandiru na vida artística, hoje? “O mesmo. Foram caminhos diferentes, mas que levaram, ambos, à Rita Cadillac”.
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