Amanda Cotrim

Amanda Cotrim

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Vivo com minha mochila pronta, se tiver que fugir, diz brasileiro no Haiti

O brasileiro Werner Garbens, 37, que adotou o Haiti como lar desde 2012, criou uma estratégia em meio à crise política e de segurança no país.

Vivo com a minha mochila pronta, para o caso de ter que fugir e ir para outra região do país.
Werner Garbens, brasileiro que vive no Haiti

Garbens chega a rir de nervoso quando fala sobre o assunto. Ele acorda todos os dias às 5h, vê as noticias e se atualiza pelos grupos de WhatsApp, para saber o que aconteceu e o que pode acontecer na região. Depois, vai para o Centro Cultural Brasil-Haiti, onde trabalha e tem melhor estrutura de luz e internet. "Mas vira e mexe também ficamos sem esses serviços."

O brasileiro assegura que tem uma rede de contatos e pessoas com as quais conversa ao longo do dia para se atualizar, mandar notícias para a família e poder se preparar se for preciso deixar a casa que vive há dois anos, na região de Pétion-Ville, a 7 km do centro da capital Porto Príncipe. Ele decidiu se mudar para lá depois que a região onde morava foi tomada por gangues.

Garbens é professor e trabalha com projetos sociais de cultura e educação. Começou a se envolver com o Haiti por meio de um grupo de pesquisas, quando estudava na Unicamp.

Porto Príncipe tomada por gangues

O medo e a angústia aumentam dia após dia em Porto Príncipe. A violência das gangues se acentuou desde 7 de fevereiro, quando normalmente ocorre a passagem de governo. Os moradores não sabem o que pode acontecer, como descreve Garbens.

Em vídeo feito em 14 de março e cedido à reportagem, o brasileiro mostra que as ruas estão mais vazias e inclusive escolas deixaram de funcionar na capital haitiana.

Lojas baixaram as portas, o aeroporto está inoperante e o fornecimento de água e luz, cada vez mais instável. Sem serviço de coleta, o lixo transborda nas vias.

Continua após a publicidade

O Haiti vive sob o domínio de duas grandes federações de gangues. Recentemente, membros de uma delas invadiram e queimaram a casa de um diretor da Polícia Nacional. Uma mulher teve seu filho assassinado e, na mesma semana, sua casa foi incendiada.

A imprensa local estima que nas últimas semanas pelo menos 4 mil pessoas estão abrigadas em escolas — muitas delas são crianças. Diante desse cenário, moradores encontram dificuldades para deixar o país, mas 33 mil já saíram de Porto Príncipe nos últimos 15 dias, segundo a OIM (Organização Internacional para as Migrações). Muitos dos que ficam tentam se refugiar em casas de amigos, parentes e conhecidos em áreas consideradas "mais seguras''.

No início de março, o primeiro-ministro Ariel Henry renunciou. Ele deve ser substituído por um Conselho de Transição. O país decretou estado de emergência e proibiu manifestações.

A violência não é de hoje. Em 2004, o Conselho de Segurança das Nações Unidas criou a Minustah, Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, para pacificar o país após um golpe de Estado. Em 2021, o presidente Jovenel Moïse, então com 53 anos, foi assassinado. No mesmo ano, o país registrou a maior taxa de sequestros per capita do mundo — 949 casos, segundo o Centro de Ação Legal em Direitos Humanos, que investiga violências e tem sede na Guatemala.

Disputa nas ruas e nas redes sociais

A falta de confiança nos políticos e nas instituições aumentou o descontentamento dos haitianos, terra fértil para grupos armados se constituírem nas ruas e nas redes.

Continua após a publicidade

Paralelamente ao domínio das ruas, há uma disputa no digital que busca o engajamento da população. Uma espécie de 'influenciadores' que seduzem principalmente jovens num país que não tem oferecido trabalho, educação e oportunidade.
Werner Garbens, brasileiro que vive no Haiti

Há perfis que ostentam poder — com integrantes das gangues em mansões milionárias — e ironizam a polícia com drones que monitoram agentes. Outros se autoproclamam revolucionários.

Além disso, as mensagens de WhatsApp fazem parte desse arsenal digital, pois é a partir dessas mensagens que as gangues, segundo Garbes, disseminam o medo — num país que tem tradição na oralidade e o "disse-que-me-disse" ganha ainda mais força.

Missão militar estrangeira?

Para o pesquisador, economista e professor haitiano Camille Chalmers, a crise no Haiti está longe de ser resolvida. Ele defende ser preciso mudar a lógica e cortar os laços entre os políticos e as gangues — relação que, segundo Chalmers, tem constituído a história do país nos últimos anos.

Continua após a publicidade

O que se discute entre grupos de intelectuais, economistas, professores, sociólogos e ativistas políticos haitianos é se há interesses políticos por trás dos ataques à população. Por exemplo, se as gangues têm o objetivo de forçar uma missão militar no país. Dessa forma, alguns de seus líderes poderiam conseguir anistia.

Camille Chalmers, que é contra a presença de missão militar estrangeira, defende uma transição democrática do poder Executivo por meios pacíficos e consensuais, além da formação de um governo "de unidade e resgate nacional".

Ele alega que as antigas missões militares estrangeiras não trouxeram benefícios para a população, mas sim miséria e uma epidemia de cólera. O pesquisador se refere especificamente à Minustah, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e que atuou de 2004 a 2017 no país. O braço militar foi comandado pelo Exército brasileiro durante 13 anos.

Garbens, entretanto, não descarta a importância de uma missão estrangeira. Mas faz ressalvas, apontando que o grupo não pode ser apenas militar.

"A Minustah fracassou. O objetivo era desarmar a população, desarticular as gangues e fortalecer a polícia nacional. Só que faltou uma quarta cláusula: reinserir os jovens, cujas referências são os líderes das gangues", avaliou.

Para ele, é necessário que a comunidade internacional esteja engajada em criar um comitê de cooperação permanente, que não esteja apenas preocupado em desarmar as gangues — mas criar condições para que as pessoas possam se desenvolver com trabalho e educação.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes