Sem verba, maior universidade argentina desliga elevador e tem aula na rua
Médicos, professores e estudantes universitários deram um abraço simbólico na quinta-feira (18) no Hospital das Clínicas, ligado à Universidade de Buenos Aires (UBA), a maior da Argentina. O protesto foi contra o congelamento do orçamento destinado às universidades e aos hospitais-escolas.
O reitor da UBA, Ricardo Gelpi, disse que "nunca vivemos uma situação como esta''. O Hospital das Clínicas informa que reduziu as cirurgias e cortou os serviços em 40%. A unidade afirma que está "impossibilitada" de fazer licitação para compras de insumos.
Na quarta-feira (17), a reportagem percorreu os corredores da faculdade de ciências médicas e ciências econômicas da UBA e notou que, por causa da falta de energia elétrica, equipamentos e serviços deixaram de funcionar.
A instituição decidiu adotar uma espécie de racionamento de energia e o uso de elevadores, por exemplo, só está autorizado em emergência ou para pessoas com dificuldade de locomoção. Alguns cursos transferiram as aulas noturnas para outros horários, ou mesmo online, para evitar gastos.
Durante a visita, a coluna flagrou funcionários limpando os banheiros com a lanterna do próprio celular. "Estamos limpando os banheiros no escuro. Não é bom, mas vamos fazer o quê? Precisa economizar e aproveitar ao máximo a luz do dia", reclamou, com mau humor, uma das faxineiras.
Professores levaram os alunos para espaços abertos, sob a luz do sol. Dezenas de estudantes de medicina tiveram aulas no pátio ou do lado de fora da universidade.
Segundo alguns estudantes, a experiência de ter aulas "na rua" também é uma forma de protesto — para que a situação da universidade seja denunciada e a população que passe pelas redondezas saiba o que está acontecendo.
Abrazo masivo al Hospital de Clínicas: médicos, docentes y alumnos rechazaron el ajuste de fondos#Argentina https://t.co/McPlNDQaSS
— Valeria Román (@ValeriaRoman) April 18, 2024
Orçamento congelado
O diretor do Hospital de Clínicas da UBA, Marcelo Melo, diz que o orçamento destinado à instituição está congelado e a inflação anual de medicamentos já alcança 1.000%. "No ano passado, nós fazíamos licitações a cada quatro meses para comprar os medicamentos e gastávamos 4 ou 5 milhões de pesos [4 ou 5 mil dólares] para um quadrimestre'', explicou.
O Hospital das Clínicas é um dos seis centros de saúde-escola do país. De acordo com dados oficiais, meio milhão de pessoas foram atendidas na instituição em 2023 e no hospital transitam mais de 10 mil pessoas diariamente — entre pacientes, estudantes, pesquisadores e profissionais. Ainda de acordo com dados oficiais, o local realiza mais de 365 mil consultas por ano e mais de oito mil cirurgias.
Reduzimos o funcionamento do hospital para 40% e nem mesmo com esse nível de funcionamento podemos enfrentar as despesas.
Marcelo Melo, diretor do hospital das clínicas da UBA
A Argentina tem três prêmios Nobel de ciência e dois pela paz.
O que diz o governo
O governo Milei afirma que não há dinheiro — sob o jargão "no hay plata", que o presidente vem repetindo desde o dia que assumiu, em dezembro do ano passado. Enquanto isso, o Ministério da Defesa anunciou 300 milhões de dólares na compra de aviões de guerra.
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Quero receberEm março, o grande Ministério do Capital Humano, que abarcou as pastas de Educação, Desenvolvimento Social e Trabalho, oficializou aumento de 70% do orçamento para os "gastos de manutenção" das universidades, principalmente para o pagamento de contas de eletricidade e gás, que aumentaram mais de 300% desde que Milei assumiu. Foi efeito da desregulação da economia e liberação dos preços pelo megadecreto de necessidade e urgência. Representantes da UBA afirmam que esse valor não é suficiente.
Milei aumenta campanha contra 'doutrinamento' nas universidades
Paralelamente ao ajuste econômico e ao orçamento congelado, o presidente da Argentina, Javier Milei, tem aumentado a campanha contra o que o seu governo tem chamado de "doutrinamento" nas universidades.
Milei tem criticado principalmente a carreira de economia, e chegou a dizer que estudantes e professores da UBA são "hipócritas, mentirosos e inimigos das ideias da liberdade''.
NO HAY ADOCTRINAMIENTO?
— Javier Milei (@JMilei) April 15, 2024
A ver la cartita de los SALAMINES hipócritas y mentirosos que niegan adoctrinamiento y persecución pero que casualmente son enemigos de las ideas de la LIBERTAD.
Hay diversidad sí, salvo que tengas la pésima idea de querer ser liberal... https://t.co/TFENlvZL3f
O estudante da Faculdade de Ciências Econômicas, Matias Miqueri, 23, diz estar surpreso com as declarações de Milei, visto que "muitos autores que ele diz admirar se formaram na Universidade de Buenos Aires", disse. Para o jovem, não existe doutrinamento no meio acadêmico.
"Me chama a atenção que justo num momento de congelamento de recursos, o presidente mude o foco e fale em doutrinamento. Não há nada disso e você caminhando pelos corredores da faculdade, vai constatar. Os professores têm autonomia e competência", afirmou Miqueri.
A estudante de economia Pilar, que preferiu não dizer o sobrenome, está no quinto ano do curso e afirmou que não se lembra de uma situação financeira tão difícil na universidade como agora.
"Imagina cursos que precisam de mais investimentos, como os da área da saúde...Aqui os professores nunca se posicionaram politicamente nas aulas. Não faz nenhum sentido essas acusações do presidente, isso não existe. Aprendemos todas as escolas econômicas, de Marx a Friedrich Hayek [escola austríaca do Neoliberalismo, admirada por Milei]."
A reportagem percorreu os prédios da UBA e não encontrou cartazes pró e nem contra Milei. O que viu foram cartazes que informam sobre a situação econômica da universidade e o congelamento do orçamento.
Na faculdade de Medicina, os estudantes estavam tendo aulas do lado de fora — eles se aglomeravam de um lado para aprender sobre as células e, do outro, confeccionavam cartazes sobre o abraço simbólico que ocorreria no dia seguinte.
A estudante Aldana Frola, que está no quarto ano de medicina, reconhece que a política nunca foi uma característica dos estudantes do curso, que sempre se colocaram como "apolítico". No entanto, segundo ela, "a situação financeira da universidade impacta a todos e, aos poucos, os estudantes estão se conscientizando dos efeitos das escolhas do presidente Javier Milei".
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