'Saidinha' de presos pode virar colcha de retalho tecida por Moro
O direito penal e os seus ramos sofreram, no curso dos séculos, profundas modificações e humanizações.
Já tivemos o medieval sistema chamado de "juízo de Deus", "ordálios", no latim da época.
Acreditava-se piamente na intervenção divina: cabia a Deus julgar os crimes catalogados pelos humanos. Assim, a função do juiz de carne e osso era apenas verificar o resultado. Por exemplo, o acusado era jogado num rio caudaloso, amarrado em pedras pesadas para afundar. Caso sobrevivesse à correnteza e às profundezas, estava absolvido por Deus.
Um dia, descobriu-se que qualquer inocente, em igual prova, não resistiria. E veio a Igreja, com a evolução, afirmando que Deus não interferia nos processos criminais da justiça humana.
Nossa Constituição
Vamos à nossa Constituição. Ela não contempla as penas de morte e perpétua.
O constituinte abraçou, no particular, a doutrina cristã da metanoia, apostando na emenda, na ressocialização do condenado.
Nas enciclopédias católicas, o verbete metanoia significa "il cambiamento dell'anima e del cuore" (em italiano, a mudança da alma e do coração). Ou melhor, a mudança interior da pessoa, se adaptando ao convívio social para não mais delinquir.
Em absoluta conformidade com a Constituição, veio a nossa lei de execução penal, que mistura direito penal, direito penitenciário, direito administrativo, expiação e execução de penas.
Essa lei de execução penal adotou o sistema progressivo do cumprimento da pena: sistemas fechado, semiaberto e aberto.
Para motivar a emenda, a ressocialização, foram criados vários estímulos. Dentre eles, por exemplo, a remição por dias trabalhados. Também as saídas temporárias, cumprido um lapso temporal, tendo o preso bom comportamento e estando em regime semiaberto. O semiaberto é todo baseado numa maior confiança no condenado: fica em liberdade nos horários de trabalho.
Compete ao juiz da execução criminal, depois de ouvir o Ministério Público e o diretor do presídio, decidir sobre as saídas em épocas especiais (feriados) e por período não superior a sete dias.
Os obscurantistas, tendo à frente os bolsonarismo radicais, são adeptos de medidas medievalescas e desumanas. Só enxergam a pena como vingança, com impossibilidade de benefícios e regalias. O pensamento é "que morram na cadeia", sem visitas.
Esse pensamento incivilizado sempre volta em forma de projeto de lei ao Congresso Nacional. No momento, a bola da vez é a lei de execução penal.
A Câmara dos Deputados, por exemplo, votou pela revogação das apelidadas "saidinhas". Fim das saidinhas.
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Quero receberA postura é inconstitucional, pois, frise-se, a aposta da nossa lei maior é na emenda, na ressocialização do preso. As saidinhas contribuem para a ressocialização do condenado. Representam forma civilizada daquilo que a doutrina penitenciária chama de " individualização da execução penal".
Em especial, os deputados se esquecem de que não ultrapassa 5% a parcela dos presos que não voltam à cadeia e obrigam o Estado à recaptura. E basta um preso contemplado voltar ao crime no período da "saidinha" para o sistema ser considerado imprestável.
Ontem, com 62 votos, o Senado abrandou um pouco o endurecimento inconstitucional votado anteriormente na Câmara, ao permitir a "saidinha" em uma única situação.
Mas em relação à lei atual, de forma geral, foi mantido o endurecimento das regras. O Senado também trombou com a Constituição, ao comprometer o sistema progressivo, com premiações e estímulos. Estímulo, no caso em exame, são as saídas nos feriados para visitar parentes. Atenção: só para quem está em sistema semiaberto, tem bom comportamento atestado pela direção do estabelecimento prisional e cumpriu mais de 1/6 da pena no regime em curso.
Sérgio Moro pisa na Constituição
Por proposta do senador Sérgio Moro, que abraçou o populismo e pisa na Constituição, só poderá ter o benefício aquele que frequenta cursos profissionalizantes, ensino médio ou superior e desde que não se trate de processo de execução de pena por crime hediondo ou praticado com violência ou grave ameaça.
Moro foi juiz e sabe bem sobre o sistema constitucional progressivo e estimulador da ressocialização. Em outras palavras, o constituinte acreditou na ressocialização do condenado. Moro, quer limitar benefícios e esquece que o sistema semiaberto é cumprido em estabelecimentos profissionalizantes, com saída para trabalho e senso de responsabilidade.
Pano rápido. Para ser eficiente, um sistema penitenciário não pode ser emendado a se transformar numa colcha de retalhos, a se desviar da sua finalidade original, constitucional.
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