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Até a máfia italiana se envolve nos serviços de acolhida a imigrantes

Eda Nagayama

Na Sicília (Itália)

06/10/2015 06h00

Osas Imafidon, 19, é um habitante de Mineo, na Sicília, o maior centro de acolhimento de imigrantes e refugiados na Itália. Atualmente, abriga em torno de 4.000 pessoas. Um dia ele sumiu do sistema informatizado de controle do campo. O número 11.093 desaparecera, assim como o montante acumulado da ajuda diária que todos recebem como pocket money: 1,25 euros ao dia --insuficiente sequer para um café ou um arancino, salgado típico siciliano.

O nigeriano Osas, que espera pelo visto de permanência há um ano e nove meses, é apenas um dos milhares de imigrantes que desembarcam há anos na costa da Itália. Segundo dados do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), foram 110 mil apenas neste ano até agosto, dos 380 mil que chegaram à Europa. O governo italiano soma 93.608 acolhidos, um contingente em torno do qual gira um negócio orçado em 800 milhões de euros neste ano. Todo o sistema de acolhimento italiano consumiu cerca de 628 milhões de euros em 2014.

À espera do visto de permanência, que pode levar meses ou até mais de um ano, os imigrantes são distribuídos em casas ou centros de acolhida, administrados pelo governo ou por Onlus, que são entidades sem fins lucrativos de utilidade pública formadas especialmente com esse objetivo e selecionadas em concorrências públicas. A estrutura, que envolve 434 sedes de acolhida, é supervisionada pelo SPRAR (Sistema de Proteção dos Solicitantes de Asilo e Refugiados, em italiano), órgão do Ministério do Interior.

Além do critério preço, as Onlus devem colocar em prática os projetos de “recepção integrada”, que incluem acomodação básica e medidas de orientação, assistência social e legal, além de desenvolver programas específicos para a integração socio-econômica e autonomia dos estrangeiros acolhidos. Para isso, essas organizações recebem 35 euros diários, em média, por imigrante acolhido.

Hoje, só nas sedes de acolhida administradas pelas Onlus, o SPRAR disponibiliza 20.744 vagas. Em 2014, o sistema todo acolheu quase 23 mil imigrantes ao custo de quase 300 milhões de euros. Diante do crescente volume de imigrantes, está previsto um aumento de 10 mil vagas ainda em 2015, elevando o custo diário para mais de 1 milhão de euros. Os recursos vêm tanto dos cofres do governo e dos municípios italianos quanto do Acnur e da União Europeia. Do orçamento de 2,4 bilhões de euros da UE para refugiados nos próximos seis anos, cerca de 560 milhões de euros serão destinados apenas à Itália.

Até a máfia se envolve

Com cifras tão altas envolvidas, o acolhimento de imigrantes apareceu, no final de 2014, como parte de um escândalo envolvendo corrupção de políticos, ações terroristas, lavagem de dinheiro e a Mafia Capitale, de Roma. Nas ligações telefônicas interceptadas durante as investigações, Salvatore Buzzi, braço direito do chefe da Mafia Capitale, Massimo Carminati, diz: "Você tem ideia de quanto lucramos com esses imigrantes? (...) O tráfico de drogas é menos lucrativo".

Buzzi e Carminati estão presos, junto com dezenas de outros acusados, e deverão ser julgados em novembro próximo. O processo, que promete ser longo, poderá alcançar ainda o Ministério do Interior e seu ministro, Angelino Alfano, e o Secretário de Estado para Política Agrícola, Alimentar e Florestal, Giuseppe Castiglione, além de Províncias e Prefeituras como Roma, Lazio e Castelnuovo.

O escândalo colocou em debate a administração e a fiscalização do sistema de acolhimento dos imigrantes e refugiados pelo Estado italiano, situação agravada pela estagnação da economia e pelo desemprego elevado, principalmente entre os jovens. Além disso, as regiões de operação das máfias e o maior número de vagas do SPRAR --majoritariamente no sul da Itália, menos desenvolvido e principal local de desembarque de imigrantes-- são curiosamente coincidentes.

Em Lazio, território da Mafia Capitale, são 4.791 vagas; na Sicília, onde atua a Cosa Nostra, há 4.782 vagas; na Calabria, da Ndrangheta, são 1.894 vagas; outras 1.862 na Puglia, onde atua a Sacra Corona, e 1.155 na Campania, região da napolitana Camorra.

Ociosidade e prostituição

Em questão de meses, os recém-chegados podem passar por diversas casas de acolhida enquanto aguardam o visto de permanência. Saidou Sabally, 19, de Gâmbia, está há nove meses em Siracusa, após passar por Portopalo, Noto e Castelmmare, sempre na Sicília. Ao contrário do que prevê o projeto de recepção integrada, não recebe aulas nem tem permissão para trabalhar. 

Fugindo de uma vingança em seu clã familiar, a máxima ambição que Saidou alimenta é obter permissão para ficar na Itália. “Aqui ninguém ataca você.”

Na casa simples que abriga Saidou e outros rapazes, em um bairro afastado do centro de Siracusa, não havia qualquer programação de atividades. A única exceção eram as noções de inglês ensinadas uma vez por semana por uma voluntária galesa. Em um dia sem aula, os imigrantes dividiam sua atenção entre bater papo e o celular. Em outra casa de acolhimento que recebe apenas mulheres, distante alguns quilômetros, algumas cozinhavam, outras cuidavam de seus bebês ou dormiam.

Há menos de um ano na Sicília, a nigeriana Musa Oseigbenhe, 20, tem tranças artificiais no cabelo, corpo e lábios fartos, além de um celular moderno e caro. Em voz baixa, relata um passado de violência sexual na Nigéria e na Líbia, mas evita falar sobre prostituição na Itália.

A funcionária responsável pelo alojamento feminino é uma italiana descendente de croatas que trabalhou anteriormente como baby-sitter. Foi contratada há dois anos, indicada por um parente. Sem qualificação ou capacitação específica, desconhece os dialetos africanos ou qualquer outro idioma diferente do italiano.

Segundo o coordenador do Centro de Estudos Interculturais e presidente do Conselho de Imigrantes da Província de Siracusa, Ramzi Harrabi, um tunisiano que vive há 15 anos na Sicília, o salário mensal de um empregado de abrigo não passa de 700 euros --remuneração de subemprego que poderia justificar parcialmente o desinteresse e escasso envolvimento com o trabalho de acolhida às imigrantes. Se elas se prostituem, diz a funcionária, não é problema dela.