Foro privilegiado deve fragmentar investigações pós-CPI da Covid
Motivo de disputas judiciais e políticas no Brasil nos últimos anos, o chamado foro privilegiado deverá definir o destino dos investigados pela CPI da Covid. O relatório final da comissão foi apresentado, na semana passada, com pedidos de indiciamento contra 66 pessoas. Pelo menos outras nove, contudo, ainda deverão ser incluídas.
Após a votação do texto, marcada para amanhã, os senadores deverão enviar as conclusões ao Ministério Público e aos órgãos policiais, responsáveis por analisar o material. Os investigadores poderão levar denúncias à Justiça, prosseguir com as apurações ou arquivar os casos.
Dos 66 atuais alvos de pedido de indiciamento, apenas 12 têm prerrogativa de foro junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), a começar pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Os demais 54 indiciados estarão sob a mira de órgãos de investigação federais ou estaduais, a depender dos crimes pelos quais respondem.
O caminho das investigações sobre a pandemia deverá ser diferente do que ocorreu, por exemplo, no escândalo do mensalão, julgado pelo Supremo em 2012. Naquela ocasião, os ministros unificaram todos os 41 réus em um único processo, apesar de apenas três terem à época do julgamento direito a foro privilegiado.
A CPI da Covid, porém, trata de uma ampla variedade de situações, que vão desde a compra suspeita de vacinas até a propagação de fake news sobre a doença. Ao todo, o colegiado de senadores apontou 24 crimes. Segundo apurou o UOL, a PGR (Procuradoria-geral da República) já descartou uma análise unificada para todos os indiciados, e deve cuidar apenas dos que têm foro.
"No mensalão, o STF entendeu que o caso justificava uma excepcionalidade. De lá para cá, no entanto, o entendimento tem sido cada vez mais consolidado no sentido de não ficarem no Supremo os investigados que não têm foro", afirma o advogado Celso Vilardi, mestre em direito processual penal e professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
A fragmentação tende provocar uma discrepância na análise dos casos. Segundo a colunista Carolina Brígido, do UOL, o STF já avalia internamente que terá processos mais lentos do que na primeira instância.
A diferença de velocidade é motivada, entre outros fatores, pelo modelo de tramitação dos processos. Caso a PGR decida ir ao Supremo, cada denúncia precisa ser analisada por todos os ministros, que decidirão se abrem ou não a ação penal. Já em primeira instância, a avaliação cabe a apenas um juiz.
A turma do Supremo
O relatório final da CPI dividiu em quatro grupos os 66 alvos de pedido de indiciamento. Somente o primeiro, com 12 pessoas, tem direito a foro no STF. Com relação a eles, as conclusões da comissão serão levadas à PGR, à PF (Polícia Federal) e ao Tribunal Penal Internacional, já que alguns foram enquadrados por crimes contra a humanidade.
Além de Bolsonaro, quatro membros do governo estão nesse grupo: os ministros Marcelo Queiroga (Saúde), Braga Netto (Defesa), Onyx Lorenzoni (Secretaria-geral da Presidência) e Wagner Rosário (CGU). Ex-ocupantes da Esplanada, como Eduardo Pazuello e Ernesto Araújo, perderam direito ao foro especial e serão investigados na primeira instância.
O benefício também alcança sete parlamentares listados no relatório. São o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e os deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), Ricardo Barros (PP-PR), Osmar Terra (MDB-RS), Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP) e Carlos Jordy (PSL-RJ).
Mesmo dentro desse grupo, porém, as investigações e eventuais denúncias da PGR podem tomar caminhos diferentes, já que as circunstâncias investigadas nem sempre têm relação direta entre si.
Rosário, por exemplo, é enquadrado no crime de prevaricação por ter supostamente ignorado irregularidades na compra da Covaxin. Já a maioria dos congressistas, inclusive os filhos de Bolsonaro, aparece no relatório por conta de "disseminação de informações enganosas" sobre a covid. A CPI classificou a conduta como incitação ao crime, que prevê de 3 a 6 meses de prisão e multa.
Crimes contra a humanidade
Para outras nove pessoas citadas no relatório, a CPI recomenda que os autos passem ao MPF, para que eventuais denúncias sejam apreciadas pela Justiça Federal. Este grupo se diferencia dos demais 45 indiciados, que deverão ser investigados na esfera estadual.
A diferença ocorre porque estas nove pessoas foram citadas por crimes contra a humanidade, que têm tratamento diferente na legislação. Para casos relativos a direitos humanos que envolvam o cumprimento de tratados internacionais, a Constituição determina que o processo seja conduzido por um juiz federal.
Estes crimes estão previstos no Estatuto de Roma, documento, ao qual o Brasil aderiu em 2002 e que rege o Tribunal Penal Internacional, conhecido como Tribunal de Haia. Por essa razão, a CPI também entregará as provas contra esse grupo à Corte sediada na Holanda.
A lista tem dois nomes do governo: Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e Mayra Pinheiro, secretária da pasta conhecida como "capitã cloroquina". O relatório imputa esse crime a ambos pela atuação em favor do chamado tratamento precoce, especialmente com a população de Manaus.
Também estão nessa condição a maioria dos representantes da operadora Prevent Senior. A CPI acusa de crimes contra a humanidade os donos do negócio, os irmãos Fernando e Eduardo Parrillo, e o diretor-executivo do grupo, Pedro Benedito Batista Júnior, além dos médicos Fernando Oikawa, Carla Guerra e Rodrigo Esper.
No relatório, eles são responsabilizados por um estudo conduzido pela Prevent para testar a eficácia de medicamentos como cloroquina e azitromicina, integrantes do Kit Covid. Outro médico, Flávio Cadegiani, é investigado por um estudo com o medicamento proxalutamida, em Manaus.
Investigações locais
Pelo menos 45 pessoas, a maioria dos alvos da CPI, deverão ser investigadas pela primeira instância dos judiciários estaduais. O relatório faz uma separação entre Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), segundo filho do presidente, e os demais citados. Os senadores entenderam que as provas ligadas a Carlos, que é vereador no Rio de Janeiro, devem ser levadas diretamente ao Ministério Público no estado.
Sobre os demais 44 citados, a CPI enviará os aos MPs e às polícias de cada estado, a depender de onde ocorreu o crime ou onde mora o investigado. Esse cenário abre a possibilidade de várias apurações pelo Brasil, já que as circunstâncias e os personagens são variados: ex-ministros, médicos, empresários, influenciadores bolsonaristas e até vendedores de vacina.
E Bolsonaro?
Bolsonaro é alvo de um pedido de indiciamento por dez crimes, de três tipos diferentes: comuns, de responsabilidade e contra a humanidade. Os sete crimes comuns imputados a ele são epidemia com resultado morte, infração sanitária, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento, emprego irregular de verbas e prevaricação. Pelo Código Penal, as penas somadas podem chegar a 40 anos de prisão.
O destino do presidente com relação a estes delitos depende da PGR e a Câmara dos Deputados. Mesmo que o procurador-geral da República, Augusto Aras, faça uma denúncia contra o presidente, ela só poderá ser julgada pelo STF se for autorizada por dois terços da Câmara dos Deputados.
Foi a Câmara que derrubou, em 2017, duas denúncias da PGR contra o ex-presidente Michel Temer. Para ter o mesmo destino de Temer, Bolsonaro precisará do apoio de 342 deputados caso seja alvo de uma acusação.
O presidente, contudo, também deve ser indiciado por dois crimes de responsabilidade: violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.
As provas relativas a ambos serão enviadas à Câmara e podem dar origem a um processo de impeachment. A decisão sobre isso, contudo, caberá exclusivamente ao presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), que jamais se mostrou disposto a processar Bolsonaro.
O relatório enquadra o presidente, por fim, em três crimes contra humanidade: extermínio, perseguição e outros atos desumanos. Os autos, nesse caso, serão levados ao Tribunal de Haia.
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