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Queda na maré de refugiados revela sofrimento de ilha grega

Zeladora da principal igreja de Skala Sikiminias olha para o mar Egeu na parte norte da ilha de Lesbos, na Grécia - Eirini Vourloumis/The New York Times
Zeladora da principal igreja de Skala Sikiminias olha para o mar Egeu na parte norte da ilha de Lesbos, na Grécia Imagem: Eirini Vourloumis/The New York Times

Liz Alderman

Em Skala Sikaminias (Grécia)

22/08/2016 06h02

Stratis Valamios acelerou e conduziu sob o luar seu pequeno barco branco para fora do porto desta pequena cidade pesqueira, empoleirada na ponta norte de Lesbos, a terceira maior ilha da Grécia.

O céu estava limpo o bastante para ver as montanhas púrpuras da Turquia a curta distância, do outro lado do mar Egeu. Seria fácil naquela noite tranquila pescar lula. Atualmente, ele precisa de uma boa pesca para poder pagar suas contas.

Há um ano, ele e outros pescadores neste minúsculo vilarejo, Skala Sikaminias, estavam realizando uma pesca mais incomum: milhares de requerentes de asilo encharcados, que cruzavam o Egeu para escapar de conflitos e pobreza no Oriente Médio e África.

Na condição de um dos pontos de desembarque na Grécia mais próximos da Turquia, Skala Sikaminias, com seus 100 habitantes, rapidamente se tornou o ponto zero da crise, a primeira parada na Europa para pessoas tentando chegar à Alemanha em uma tentativa desesperada de começar uma nova vida.

"Eu estava no meio do mar e via 50 barcos ziguezagueando na minha direção", disse Valamios, olhando para o estreito canal. "Eu acelerava na direção deles e eles jogavam suas crianças no meu barco para serem salvas."

Hoje, os refugiados em grande parte pararam de vir. A costa, antes repleta de coletes salva-vidas cor de laranja e destroços de barcos naufragados, foi limpa até ficar quase que impecavelmente branca. Mas o drama humano deixou uma marca aqui, assim como por toda Lesbos, de formas que apenas começaram a se desdobrar.

O vilarejo está quase vazio de turistas neste ano, à medida que alemães, suecos e outros visitantes, que há muito procuravam as águas cristalinas de Lesbos, optaram por viajar para outros lugares, para evitar passar suas férias em um lugar agora associado com desespero humano.

Os negócios nos hotéis e tavernas da ilha caíram cerca de 80%, especialmente ao longo do trecho de 12 quilômetros entre Skala Sikaminias e a cidade turística de Molyvos, onde foram levados muitos dos mais de 800 mil refugiados que sobreviveram à travessia no ano passado.

9.ago.2016 - O pescador Stratis Valamios vai para o mar no vilarejo de Skala Sikiminias, na ilha de Lesbos, na Grécia - Eirini Vourloumis/The New York Times - Eirini Vourloumis/The New York Times
O pescador Stratis Valamios vai para o mar em Skala Sikiminias, na ilha de Lesbos
Imagem: Eirini Vourloumis/The New York Times


Valamios costumava complementar sua renda de pescador trabalhando cinco meses por ano na taverna Myrivilis' Mulberry, de frente para um porto bucólico onde os pescadores consertam as redes amarelas sob oleandros e os gatos do vilarejo perambulam atrás de peixe.

Neste ano, ele só conseguiu trabalhar um mês, devido à escassez de clientes. Quase 1.000 gregos na área perderam empregos sazonais.

Entre os moradores, há um senso de incompreensão. Quando a crise dos refugiados teve início, muitos foram lançados no papel de bons samaritanos. Com generosidade ilimitada, eles se uniram para resgatar milhares de sírios, afegãos e outros imigrantes em perigo, meses antes de grupos de ajuda humanitária e os governos europeus chegarem para ajudar.

"No início, até minhas ovelhas ficavam assustadas por causa de todos os gritos. Mas, assim como nós, elas se acostumaram."

Yorgos Sofianis, pastor

"O vilarejo todo está orgulhoso do que fizemos", disse Theano Laoumis, que ajuda a dirigir a taverna Kyma. Na praia da taverna, os botes de refugiados chegavam em um fluxo incessante.

"Você não sabia quem salvar primeiro, tantas eram as pessoas. Mas nós as salvamos. Era algo natural. E deveria ter trazido boa publicidade, não má."

A queda nos negócios atingiu Lesbos enquanto a Grécia ainda luta para sair de uma longa crise econômica. Algumas pessoas estão amargas pela maré de refugiados ter apenas aumentado seus problemas.

"Não quero que voltem", disse Nikos Katakouzinos, um pescador. "Eles causaram danos suficientes ao vilarejo e à ilha."

10.ago.2016 - Lefteris Stylianou anota os pedidos dos clientes em seu restaurante no vilarejo de Skala Sikiminias, na ilha de Lesbos, na Grécia - Eirini Vourloumis/The New York Times - Eirini Vourloumis/The New York Times
Lefteris Stylianou anota os pedidos dos clientes em seu restaurante no vilarejo de Skala Sikiminias
Imagem: Eirini Vourloumis/The New York Times

Mas a maioria dos moradores em Skala Sikaminias não culpa os imigrantes. Muitos moradores locais são descendentes de refugiados gregos, que fugiram da Turquia em meio à guerra com a Grécia nos anos 1920.

Hoje, eles ficam aturdidos com as críticas aos sírios e outros que fogem de conflitos, correndo risco na perigosa travessia do Egeu, que também se transformou em túmulo de mais de 1.000 homens, mulheres e crianças cuja jornada terminou em tragédia.

Essas imagens surgem com frequência na memória coletiva de Skala Sikaminias, agora que a tranquilidade voltou e o Egeu está calmo e claro.

Em uma noite recente, Valamios se dirigiu para um farol que muitos imigrantes buscavam ao se aproximarem da costa grega vindos da Turquia.

Um de seus primeiros resgates aqui ocorreu em 2009, antes da crise atingir o ápice. Refugiados começavam a chegar do Oriente Médio e um bote plástico lotado com 20 pessoas estava afundando. Ele conseguiu resgatar 10; as demais, entre elas crianças, foram levadas pelas ondas.

"Antes disso, eu não sabia o que era afogamento", disse Valamios, um homem asseado e pensativo. "Percebi que se você não sabe nadar, você afunda feito uma pedra."

Depois que a chanceler Angela Merkel disse no ano passado que a Alemanha acolheria os refugiados, barcos começaram a chegar aos milhares. O governo grego, em meio a uma crise econômica e política, estava terrivelmente despreparado. Assim, o vilarejo de pescadores entrou em ação, correndo na direção dos botes cheios de água enquanto os gritos ecoavam pelo mar.

"Nosso pessoal estava em choque, eram muitos bebês", lembrou Valamios. "Nós pegávamos primeiro os bebês, depois voltávamos para pegar os adultos. Com frequência não sabíamos se as crianças se transformariam em órfãs."

Ele fez uma pausa e depois cerrou os dentes. "Nós vimos muitas pessoas morrerem."

10.ago.2016 - Equipe de salva-vidas espanhóis treina em praia de Skala Sikiminias, na ilha de Lesbos, na Grécia - Eirini Vourloumis/The New York Times - Eirini Vourloumis/The New York Times
Equipe de salva-vidas espanhóis treina em praia de Skala Sikiminias
Imagem: Eirini Vourloumis/The New York Times


O vilarejo logo montou um sistema de resgate. Quando alguém via um bote de imigrantes em apuros, ele ou ela alertava os pescadores para saírem em ajuda. Os moradores se reuniam na praia para receber as embarcações que chegavam e ajudar os sobreviventes, que a certa altura chegavam a cerca de 5.000 por dia.

Mulheres, lideradas pelas avós do vilarejo, levavam os refugiados para uma pequena casa, onde os vestiam com roupas doadas e davam leite para os bebês.

Yorgos Sofianis estava entre os posicionados na praia. Ele é um pastor, com seu estábulo situado no alto de uma colina, de onde podia ver as embarcações chegarem. "No início, até mesmo minhas ovelhas ficavam assustadas por causa de todos os gritos", ele disse. "Mas, assim como nós, elas se acostumaram."

"Era uma situação de terceiro mundo", ele lembrou. "As ruas estavam cobertas de pessoas. Em algumas das crianças, era possível ver cicatrizes da guerra de onde vieram. Até mesmo  a pessoa mais contrária mudaria de ideia se visse aquilo."

Em meio ao caos, Sofianis encontrou alguma dose de salvação. Seu filho e filha adolescentes morreram recentemente de uma forma rara de epilepsia, em dois Natais consecutivos.

"Certa noite, um garoto chegou à praia e parecia demais com meu filho falecido", ele disse. "Eu me virei em lágrimas. Quanto uma pessoa pode suportar? Ao menos aquele garoto sobreviveu."

Ele apertou os lábios e olhou com tristeza para o mar: "Foi aquilo que me salvou, ajudar aquelas crianças. Porque não pude ajudar as minhas".

Em julho do ano passado, mais barcos da guarda costeira passaram a patrulhar as águas e organizações não governamentais tomaram a área em ajuda. Então, equipes internacionais de notícias chegaram ao vilarejo, disputando por imagens do drama humano.

"Então se transformou em espetáculo", disse Sofianis. "Às vezes paravam de fotografar e ajudavam os refugiados, mas muitos estavam aqui apenas interessados em seu trabalho."

Na taverna Mulberry, Lefteris Stylianou, o proprietário, olhava para seu café semi-vazio e falava amargamente das consequências. "Eles queriam vender dor, enquanto dávamos tudo o que podíamos para ajudar", ele disse, referindo-se à mídia. "Por favor, diga às pessoas que tudo está novamente seguro e bonito aqui. Nós precisamos do turismo."

À medida que o verão se aproxima do fim, o vilarejo ainda enfrenta dificuldade para voltar ao normal. A cura parece que ainda demorará.

Os moradores não veem mais o mar da mesma forma. Quando olham para o horizonte, alguns dizem pensar por um segundo que outro bote de refugiados está chegando.

"Temos de estar preparados", disse Valamios. "Se acontecer de novo, todos farão exatamente o mesmo: nós ajudaremos."