Jamil Chade

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Reportagem

Com mundo em crise e ONU esvaziada, Lula vai pedir nova ordem internacional

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subir ao púlpito da ONU para abrir nesta terça-feira, às 10h, a Assembleia Geral das Nações Unidas, uma de suas missões será a de tentar restabelecer o Brasil como protagonista na política internacional e virar a página de quatro anos de discursos que foram recebidos com espanto e desprezo.

Mas ele também usará o palco mais importante da diplomacia mundial para defender a criação de uma nova ordem internacional, com um novo desenho das instituições herdadas ainda do resultado do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e o reconhecimento definitivo do poder dos emergentes.

Sem as presenças dos líderes de China e Índia, Lula ainda quer usar o espaço para se posicionar como o legítimo representante dos países em desenvolvimento.

Essa posição não é apenas o resultado de um vácuo político nesta semana. Ao longo dos últimos nove meses, Lula tem tentando ser o interlocutor capaz de falar com Joe Biden e Xi Jinping. Com Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Com Nicolás Maduro e Giorgia Meloni. Voltou a viajar para a África, mas tenta um acordo comercial com os europeus.

A meta, nos bastidores do Planalto, é a de credenciar o Brasil para ser uma "escolha natural" para uma eventual vaga no Conselho de Segurança da ONU ampliado. Entre os artífices da diplomacia de Lula, a eventual entrada do país no órgão máximo do poder internacional deixaria um legado histórico de seu governo.

Ainda assim, as polêmicas em relação às falas improvisadas do brasileiro questionando o Tribunal Penal Internacional, os elogios a Nicolás Maduro, a derrapagem sobre falas relativas à democracia ou sugerindo que a Ucrânia ceda parte de seu território, além da exploração de petróleo na foz do Amazonas, levantam resistências e dão munição para grupos e países pouco dispostos a ceder espaço para Lula nos bastidores da diplomacia.

O posicionamento do Brasil de evitar denunciar publicamente países emergentes por violações de direitos humanos também tem causado mal-estar, inclusive entre os vizinhos sul-americanos que esperavam do governo Lula uma defesa da democracia. Na ONU, o Itamaraty insiste que tem apenas privilegiado o diálogo.

Cobranças aos ricos

Lula, em seu discurso, fará duras cobranças aos países ricos, denunciando a desigualdade estrutural como fator central das crises que hoje assolam o planeta e da desconfiança entre governos.

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O Brasil pedirá que as economias ricas assumam suas responsabilidades na ajuda aos emergentes para realizar sua transição energética e para que cumpram suas promessas no Acordo do Clima de Paris, que aceitem uma nova realidade política no mundo e que abram espaço para uma reforma da ONU.

Para completar, quer recursos dos mais ricos para colocar fim à fome e pobreza extrema até 2030. Numa versão preliminar, o discurso ainda denunciava a situação da dívida dos países africanos, considerada como impagável.

Segundo alguns de seus assessores, o discurso tem um sentido claro: é hora de redesenhar a governança global e reconhecer as novas relações de poder que existem no mundo.

ONU esvaziada e em crise

Lula, porém, fala a uma entidade que flerta com uma de suas piores crises em anos. O racha entre as potências paralisou o Conselho de Segurança, incapaz de dar respostas aos problemas globais. Seu secretário-geral, Antonio Guterres, não esconde conversas privadas com sua equipe sua frustração e desespero diante de sua irrelevância. Ao longo dos últimos meses, ele tentou apresentar propostas para mediar a crise entre ucranianos e russos, sem qualquer sucesso e nem apoio das potências.

A ONU ainda vive o drama de não conseguir mais recursos dos países doadores para atender às crises humanitárias. De 44 situações de emergência no planeta, apenas seis delas tem mais de 50% dos recursos necessários para sair ao socorro das vítimas. Na Venezuela, a ONU apenas destinou 16% do orçamento necessário, 19% para Moçambique ou 27% em Mianmar. O resultado tem sido o corte da ajuda alimentar e o abandono, apenas no Afeganistão, de 10 milhões de pessoas que precisam de ajuda.

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Se não bastasse, a meta estabelecida pela ONU de erradicar a fome e a pobreza extrema até 2030 corre o sério risco de não ser mais atingida, enquanto a constatação é de que nunca, desde 1945, tantas pessoas precisam de ajuda como agora. A isso se soma um número recorde de refugiados e o maior número de conflitos armados em 75 anos.

Outro sinal do colapso das regras, segundo a entidade, tem sido a intensidade de ataques contra alvos civis. Em 2022, a ONU registrou 1163 ofensivas contra escolas e 647 contra hospitais, um aumento de 112% em comparação ao ano de 2021.

O racha entre as potências ainda ficou evidenciado quando China, Rússia e seus aliados enviaram nesta semana uma carta para a cúpula da ONU alertando que não assinariam os pactos sociais, nesta semana em Nova York, diante da recusa do texto de lidar com sanções impostas sobre eles.

Desejo de uma nova diplomacia

Fontes no Palácio do Planalto e no Itamaraty apontam que o discurso de Lula será o posicionamento mais completo da nova política externa brasileira e determinará as prioridades e rumos da diplomacia para os próximos anos.

A fala está sendo acompanhada por ação. A ordem do Palácio do Planalto é que cada ministério se engaje em seus respectivos setores para voltar a colocar o Brasil no centro do debate, seja nos temas financeiros, de saúde, de paz ou na questão comerciais. No total, 13 ministros estão em Nova York nesta semana.

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Ao longo do mandato de Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022, o governo usou o momento mais aguardado da diplomacia brasileira para falar essencialmente para seu público doméstico, com ataques contra o "socialismo", o "globalismo" e referências a Deus e família.

Quando a mensagem era à comunidade internacional, Bolsonaro abriu crises e gerou protestos. Icônica foi a imagem de uma Angela Merkel, então chanceler alemã, desconfortável ao ouvir o ex-presidente discursar, ainda em 2019.

Em falas repletas de desinformação e ataques contra as instituições, Bolsonaro ainda colecionou polêmicas e chegou a repetir frases inteiras de discursos proferidos por Donald Trump, o ex-presidente dos EUA.

Lula, em seu terceiro mandato como presidente, quer marcar sua volta à ONU com um discurso e uma operação nos bastidores que represente o retorno do Brasil às mesas de negociação e à definição dos grandes temas mundiais.

Para isso, o presidente desembarca com temas globais e tentando reposicionar o Brasil como protagonista.

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Lula vai defender cinco pontos fundamentais, com fortes cobranças aos países ricos:

O combate contra a desigualdade e contra a fome

O presidente vai insistir que, sem lidar com essas questões, não haverá como superar algumas das principais crises internacionais. Lula ainda destacará a volta da fome e apontará para a concentração de renda.

As metas de desenvolvimento social estabelecidas pela ONU para 2030 não devem ser atingidas se o atual ritmo de progresso for mantido — hoje apenas 15% das metas podem ser cumpridas. A ONU estima que o mundo precisará de U$ 500 bilhões por ano para lidar com esses desafios, e o dinheiro terá que vir dos países ricos.

No caso da fome, a meta de erradicar o problema até 2030 sofreu um forte abalo com a pandemia da covid-19 e o corte de recursos de doadores internacionais. Mais de 720 milhões de pessoas vivem em condições de fome extrema.

Ucrânia e Paz

Lula deve indicar que o Brasil tem um compromisso com o direito internacional, com a Carta das Nações Unidas e que condena a agressão a qualquer Estado soberano. Mas, numa mensagem ao ocidente, pedirá que seja construída uma "paz duradoura", outra forma de alertar que preocupações legitimas de russos e outros países sejam consideradas.

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Durante o desenho do discurso, também foi colocada a possibilidade de que ele faça uma crítica ao fato de a comunidade internacional concentrar seus esforços apenas na crise em Kiev, abandonando dezenas de outras situações emergenciais, como no Haiti.

Nesta quarta-feira, após desencontros e um mal-estar diplomático, Lula e Volodymyr Zelensky vão finalmente se reunir para sua a primeira conversa bilateral de forma presencial.

Clima, compromisso do Brasil e promessa dos ricos

O governo brasileiro vai anunciar que abandona os compromissos climáticos de Bolsonaro e que metas mais ambiciosas serão traçadas. Mas também fará duras cobranças aos países ricos para que assumam seus compromissos de US$ 100 bilhões por ano para ajudar os emergentes a promover a transição energética.

Reforma da ONU e um novo espaço para emergentes

Num esforço de recuperar a credibilidade da ONU, Lula insistirá que a entidade apenas terá função se passar por uma reforma que permita que os emergentes tenham mais voz. Seu apelo principal é para que as potências do Conselho de Segurança aceitem uma reforma, com novos membros. O Brasil é um dos candidatos.

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Democracia

O discurso ainda deve apontar para as ameaças que sofrem as democracias e destacará como o Brasil consolidou o estado de direito ao conseguir evitar um golpe de estado e processar os responsáveis pelo 8 de janeiro.

E um pedido por um redesenho mundial

Pessoas que estiveram envolvidas no processo de coleta de informações para subsidiar a elaboração do discurso destacam ainda que a fala foi tratada no governo como o "ápice" da formulação da política externa de Lula.

Sua construção, porém, atravessou algumas etapas. Num primeiro momento, nas primeiras cúpulas nas quais participou, Lula alertou em seus discursos aos líderes estrangeiros o fato de que o sistema internacional está falido. Ele, porém, defendeu que um mundo dividido em blocos e com polos hegemônicos não interessaria aos países emergentes.

Por fim, passou a denunciar o desequilíbrio global e a ausência dos emergentes nas decisões do planeta.

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Agora, sua fala vai sugerir a necessidade de um redesenho da ordem internacional como resposta às crises globais. E, assim, tentar se posicionar com o legítimo interlocutor dessa reforma.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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