Jamil Chade

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Reportagem

Com abstenção dos EUA, Conselho da ONU aprova pela 1ª vez cessar-fogo

Com a abstenção dos EUA, o Conselho de Segurança da ONU finalmente aprova uma resolução na qual é demandado que um "cessar-fogo imediato" seja determinado em Gaza. A trégua valeria durante o mês sagrado do ramadã — que vai até 9 de abril.

No período, os governos da região, potências, Israel e o Hamas tentariam chegar a um acordo permanente. O texto ainda determina a libertação imediata dos reféns mantidos pelo Hamas e a abertura de Gaza para ajuda internacional.

Há, porém, um debate sobre a aplicação da resolução. O governo americano insistiu que a resolução não é legalmente vinculante, já que o texto não diz que o Conselho "decide" estabelecer um cessar-fogo, mas apenas "demanda".

Para os autores da proposta e para as autoridades palestinas, o argumento da Casa Branca não é válido. "Se Israel não cumprir, o Conselho será convocado para aprovar medidas contra o governo de Benjamin Netanyahu", prometeu o embaixador palestino, Riyad Mansour. Isso poderia ser feito a partir de sanções ou imposição da força.

Crise entre Biden e Netanyahu

Foram 14 votos de apoio ao texto e uma abstenção — a do governo de Joe Biden. O gesto norte-americano marca uma mudança importante em sua posição e a confirmação de um racha entre Biden e Benjamin Netanyahu.

Imediatamente após o resultado, o governo de Benjamin Netanyahu anunciou que suspendeu a visita planejada de uma delegação de Israel para os EUA. O grupo iria debater com os americanos uma alternativa à invasão planejada por Israel de Rafah. O primeiro-ministro acusou a Casa Branca de abandonar sua "posição de princípio".

O governo americano se apressou para explicar que o voto não significa uma mudança na posição dos EUA de apoio a Israel.

O porta-voz da Casa Branca, John Kirby, afirmou que o governo Biden estava "muito decepcionadas com a decisão de Netanyahu de não enviar seus assessores para conversas na Casa Branca sobre a operação de Rafah".

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A aprovação ainda ocorre no mesmo dia em que um relatório da ONU classifica, pela primeira vez, como "genocídio" as mortes ocorridas entre os palestinos.

Aplausos após votação e choro de palestino

Essa foi a quinta tentativa de votar um cessar-fogo num conflito que já fez mais de 32 mil mortos. A aprovação na ONU ocorre no momento em que as negociações de trégua mediadas por EUA, Qatar e Egito são conduzidas em Doha.

O voto foi seguido de um raro aplauso no Conselho, já abalado por meses de paralisia.

Essa resolução deve ser implementada. O fracasso seria imperdoável.
António Guterres, secretário-geral da ONU

O embaixador da Argélia, Amar Bendjama, falou em nome dos governos árabes e insistiu que a aprovação era um sinal de que os palestinos "não seriam esquecidos". "Esse banho de sangue permanece há muito tempo e precisa acabar", disse.

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Riad Mansour, embaixador palestino na ONU, comemorou a aprovação e teve dificuldades de segurar as lágrimas. "É um dia histórico. Isso precisa ser um ponto de inflexão. Uma nação está sendo assassinada", disse um emotivo Mansour. "A vida deve prevalecer em Gaza", insistiu.

A resolução foi apresentada por Moçambique e contou com o apoio da Argélia, Suíça, Japão, Equador e todos os demais membros não permanentes do Conselho da ONU.

"A situação em Gaza é motivo de grande preocupação para todo o mundo", disse o embaixador moçambicano, Pedro Comissario Afonso. Para ele, o que ocorre no Oriente Médio é uma "ameaça à paz mundial".

Israel afirma estar "enojado" e chama texto de "vergonhoso"

Guilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, afirmou estar "enojado" com a resolução e chamou o texto de "vergonhoso".

Segundo ele, a única forma de recuperar os israelenses mantidos sequestrados pelo Hamas, desde 7 de outubro, é por meio de uma operação militar.

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"A aprovação da esperança ao Hamas de ter um cessar-fogo, sem ter de negociar a soltura dos reféns", disse. Para ele, o texto "mina" a capacidade de negociar o retorno dos israelenses mantidos pelo grupo palestino.

Ele ainda criticou o fato de a resolução não condenar o Hamas. Segundo ele, o Conselho foi rápido em condenar os ataques terroristas em Moscou, no fim de semana. "Por qual motivo discrimina entre russos e israelenses?", disse.

"Foi o Hamas, com um massacre, que começou essa guerra. Na resolução, parece que a guerra começou sozinha. Não foi Israel que começou essa guerra", completou.

O que a resolução determina

Que o cessar-fogo imediato para o mês do ramadã seja respeitado por todas as partes, levando a um cessar-fogo sustentável e duradouro.

A libertação imediata e incondicional de todos os reféns e a garantia de acesso humanitário.

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Que as partes cumpram suas obrigações de acordo com o direito internacional em relação a todas as pessoas detidas.

Intensas negociações

O processo de aprovação foi alvo de intensas pressões. Na sexta-feira (22), uma proposta dos EUA havia sido vetada pela China e Rússia. O texto do governo Biden falava na exigência de que a suspensão das hostilidades fosse seguidas por uma libertação dos reféns israelenses, mantidos pelo Hamas.

O texto ainda determinava o fim do financiamento ao grupo palestino por parte de atores estrangeiros.

Para o embaixador palestino Riyad Mansour, a resolução americana "não significava que um cessar-fogo ocorreria".

Para que o novo texto fosse aprovado, negociações nas últimas horas conduziram a algumas mudanças na resolução, originalmente proposta por dez países não permanentes do Conselho e apoiada pelos palestinos, russos e chineses.

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Os americanos pediram que fosse incluída uma referência às exigências de que os reféns mantidos pelo Hamas fossem liberados, além de uma condenação explícita aos atos do grupo palestino.

Durante o fim de semana, o governo Biden fez questão de dizer que apenas apoiaria uma resolução que condicionasse o cessar-fogo à liberação dos reféns. Mas governos estrangeiros alertaram que, com essa exigência, o que poderia ser visto seria o sequestro de um avanço em qualquer uma das áreas dependentes do progresso em outras. No fundo, tudo ameaçaria ficar bloqueado.

Nas negociações, os demais membros do Conselho insistiram que tanto o cessar-fogo quanto a liberação dos reféns eram importantes e que deveriam ser citados. Mas sem condicionantes.

No domingo (24) à noite, o governo Biden apresentou mais uma condição. A Casa Branca exigiu que o termo "cessar-fogo permanente" fosse substituído por "cessar-fogo duradouro". Caso contrário, poderiam vetar a resolução.

Os russos tentaram impedir a mudança e propuseram uma emenda para restabelecer o termo "permanente". Moscou alegou que a mudança tornaria o texto mais fraco e que Israel poderia restabelecer a ofensiva a qualquer momento. Mas a iniciativa não foi aceita e o texto foi mantido com a linguagem dos EUA.

Governo Biden explica abstenção e diz que acordo "está próximo"

Linda Thomas Greenfield, embaixadora norte-americana, afirmou que, mesmo assim, não votou a favor por não haver uma condenação explícita ao Hamas. Segundo ela, as negociações estão chegando "perto de um acordo". "O cessar-fogo poderia ter ocorrido há meses se Hamas tivesse liberado reféns", disse.

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A americana pediu que governos pressionem o Hamas para aceitar um acordo. Mas ela acusou Rússia e China de não agirem para condenar o Hamas. "Eles não estão interessados na paz", disse.

Usam esse conflito como projeto político para dividir esse Conselho. Isso é profundamente cínico.
Linda Thomas Greenfield

Rússia acusa EUA e diz que resolução brasileira poderia ter sido aprovada

Numa declaração após o voto, o embaixador da Rússia, Vassili Nebenzia, acusou os norte-americanos de terem impedido o Conselho de dar uma resposta e lembrou que, ainda em outubro de 2023, o Brasil apresentou uma resolução que propunha basicamente o mesmo do texto aprovado nesta segunda. "Mas os americanos vetaram o projeto do Brasil", disse o russo.

O governo Biden também queria que o texto trouxesse um endosso ao processo negociador que os EUA realizam, ao lado de Egito e o Catar. Mas os demais países resistiram, principalmente por não se tratar de uma proposta multilateral ou dentro do quadro da ONU.

EUA mudam de posição

Na ONU, a aprovação foi interpretada como um reconhecimento implícito por parte da administração de Joe Biden de que as imagens dos mortos em Gaza e o apoio às ações de Benjamin Netanyahu estavam começando a abalar a credibilidade do presidente — tanto nos EUA como no cenário internacional.

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Biden está em ano eleitoral e passou a ser acusado por sua própria base de ser cúmplice pelas mortes de palestinos.

O UOL apurou que, em outubro, a diplomacia norte-americana procurou o Itamaraty para alertar que, como presidente temporário do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil deveria evitar envolver o organismo na questão de Gaza.

O argumento era de que a diplomacia seria feita nos bastidores — e não em atos públicos. À medida que a guerra se estendia, embaixadores brasileiros e de outras partes do mundo passaram a questionar a efetividade real das negociações conduzidas pelos EUA.

Nas últimas semanas, a União Europeia rompeu seu silêncio e também passou a pedir um cessar-fogo em Gaza.

Mortes e destruição

O Conselho de Segurança já aprovou duas resoluções sobre Gaza, desde 7 de outubro, quando o Hamas atacou Israel. Mas nenhuma delas pedia um cessar-fogo.

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O Hamas também é alvo de pressões por parte de seus aliados na região, que temem que a guerra saia de controle e afete a estabilidade de regimes em diferentes partes do Oriente Médio e do Golfo.

Em declarações para a reportagem do UOL, altos funcionários da ONU viram a decisão com um "gosto amargo". Nas primeiras tentativas de se propor um cessar-fogo, lideradas pelo Brasil em outubro de 2023, a guerra havia feito 3,2 mil mortos. Hoje, são dez vezes mais.

Os dados da entidade também revelam a dimensão da destruição até agora:

57% dos palestinos sem emprego, incluindo na Cisjordânia.

35% de todos os prédios de Gaza destruídos ou abalados por bombas.

Ainda assim, a ONU quer aproveitar a aprovação da resolução para mover rapidamente uma operação de resgate dos mais de 2 milhões de palestinos. A entidade estima que a fome é "iminente" na região, que viu sua produção agrícola arrasada.

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Um dia antes da votação, a ONU alertou que "as pessoas em Gaza, especialmente no norte, estão enfrentando níveis chocantes de doenças e fome".

A entidade alertou que funcionários estão sendo "repetidamente impedidos de fazer nosso trabalho, especialmente no norte sitiado". "Os riscos à segurança, os bombardeios incessantes, o colapso da ordem civil e as restrições de acesso continuam a impedir a resposta humanitária", completou

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