Rio ou lago? Por que classificação do Guaíba importa na preservação

A classificação oficial do Guaíba como lago (e não como rio) favoreceu o surgimento de construções mais próximas do corpo de água. As inundações do Guaíba tomaram a região metropolitana de Porto Alegre, causando mortes e estragos —o nível da água voltou a subir nesta segunda-feira.

Como é a regra

Na região do Guaíba, há edificações que tecnicamente estão de acordo com o Código Florestal. A lei protege as margens de corpos de água, mas, dependendo de como são classificados, há diferença na distância permitida para a construção dos imóveis.

As APPs (Áreas de Preservação Permanente) variam de acordo com o tamanho do corpo de água. O Código Florestal determinou o quanto das margens devem ser preservadas em relação a um rio ou lago.

A discussão sobre o que é o Guaíba (se rio ou lago) pode ser decisiva para a definição de parâmetros de proteção, segundo especialistas. Além disso, a preservação do corpo hídrico é crucial para evitar transtornos e danos à população em meio à emergência climática.

Caso o Guaíba seja considerado um rio, ele se apresentaria com mais de 600 metros de largura, o que levaria a uma regra de preservação das margens de pelo menos 500 metros. Como a prefeitura e o governo estadual classificam o Guaíba como um lago, o tamanho de preservação no entorno dele é menor. Segundo o Código Florestal, as margens de lagos devem ter proteção de apenas 30 metros em zonas urbanas, o que possibilita construções mais próximas. Não há um consenso entre os especialistas se o Guaíba é rio ou lago.

'Incentivaram ocupação da orla'

Voluntários transportam colchões doados em embarcação no Guaíba, em Porto Alegre
Voluntários transportam colchões doados em embarcação no Guaíba, em Porto Alegre Imagem: Anselmo Cunha / AFP

Para especialistas, houve descaso com a proteção do Guaíba. Rualdo Menegat, professor titular no Instituto de Geociências da UFRGS, diz que ocorreu um movimento incentivando as construções próximas à orla.

Em período recente, houve estímulo para a construção de condomínios próximos à orla do Guaíba e, inclusive, espigões no cais do porto e no centro de Porto Alegre.
Rualdo Menegat

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Existe uma política de, cada vez mais, incentivar a ocupação da orla e isso tem de ser revisto. Sem a preservação, há menor infiltração das chuvas, maior erosão do solo, escoamento das águas e assoreamento. Não houve só elevação de água, houve muita lama, o que é sinal de mau uso do solo. Deveríamos pensar em uma revegetação, para o amortecimento das chuvas.
Paulo Brack, biólogo e professor titular do departamento de botânica da UFRGS

Mudanças nas regras estaduais também fragilizaram a proteção, na opinião de Paulo Brack, biólogo e professor titular do departamento de botânica da UFRGS. Ele lembra que, em 2020, a Assembleia do Rio Grande do Sul aprovou um novo código ambiental que alterou 480 normas ambientais.

As áreas de preservação permanente ficaram fragilizadas. Houve negligência para preparar as pessoas porque, em setembro de 2023, houve cheias e os institutos meteorológicos já tinham alertado sobre o que está acontecendo agora.
Paulo Brack

Rio ou lago?

De um lado, falta legislação mais forte para proteger os lagos no país, diz Rualdo Menegat. Ele defende que o Guaíba é um lago e diz que o Brasil precisa criar leis que protejam mais lagos e lagunas. Tecnicamente, lagos são caracterizados, entre outros aspectos, pela baixa renovação de água. Os rios, por sua vez, têm uma renovação maior de água.

A legislação brasileira protege mais as margens dos rios do que a de lagos. Isso porque somos um país fluvialista, drenado por imensas redes de rios e afluentes. Os lagos, pensados sempre como corpos pequenos cercados de terra que não inundam, ficaram de fora. No Rio Grande do Sul, onde está um dos maiores complexos de lagos e lagunas interconectados (Lago Guaíba, Lagoa do Casamento, Laguna dos Patos e Lagoa Mirim), chamado Mar de Dentro, não tem uma lei específica de proteção, nem do conjunto e nem das margens.
Rualdo Menegat

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Já o reconhecimento do Guaíba como um curso d'água (a exemplo do que é um rio) pode ampliar a proteção e evitar inundações. Brack, que também faz parte do InGá (Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais), diz que esse reconhecimento valeria para aumentar a preservação.

Estamos com uma ação pelo reconhecimento de que o Guaíba é um curso d'água e, por isso, há a necessidade de manter esses 500 metros de área de preservação, e não simplesmente os 30 metros atuais. Queremos evitar uma discussão sobre o nome e, na condição de curso d'água, ele teria proteção para enfrentar essa problemática.
Paulo Brack

Governo destaca proteção

O governo do Rio Grande do Sul contestou as críticas feitas pelos especialistas sobre a fragilização nas regras ambientais. "Apenas citam o número de alterações [nas normas ambientais] sem entrar no mérito, como se a simples alteração por si só fosse um prejuízo ao meio ambiente", diz em nota. O governo afirma que, dentre as alterações, houve a inclusão da previsão de proteção ao pampa, além de aumentar a fiscalização de órgãos ambientais e a correção monetária de multas aplicadas. Em relação à ocupação no entorno do Guaíba, o governo orientou procurar as prefeituras.

A Prefeitura de Porto Alegre não respondeu aos questionamentos —o espaço segue aberto.

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