Ernesto diz à CPI que Itamaraty atuou por cloroquina e nega ataques à China
O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo afirmou hoje, em depoimento de cerca de sete horas à CPI da Covid, que o Itamaraty atuou pelo fornecimento de hidroxicloroquina, medicamento que não tem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19.
Afirmou, ainda, que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) agiu pessoalmente a fim de viabilizar a importação do remédio, embora o pedido inicial tenha sido feito pelo Ministério da Saúde.
Naquele momento, março [de 2020], havia uma expectativa de que houvesse eficácia no uso da cloroquina para o tratamento da covid, não só no Brasil. Havia notícias sobre isso de vários lugares do mundo. Houve uma grande corrida aos insumos para hidroxicloroquina e baixou precipitadamente o estoque de cloroquina - fomos informados por isso pelo Ministério da Saúde"
Ernesto Araújo
Por isso, afirmou, o Ministério das Relações Exteriores buscou ajudar a viabilizar a importação de insumos para farmacêuticas brasileiras produzirem hidroxicloroquina, com destaque para conversas com a Índia.
Apesar de Ernesto ter citado março, mesmo depois, apesar de alertas sobre a ineficácia do medicamento contra a covid-19 e efeitos colaterais gerados, o Itamaraty continuou mobilizado em busca do produto, conforme mostrou a Folha de S.Paulo.
Relator da Comissão Parlamentar de Inquérito, Renan Calheiros (MDB-AL) questionou Ernesto se ele havia discutido o assunto com alguém, ao que o ex-ministro respondeu: "Não. Eu não me recordo não. Enfim, houve... Claro, houve o... Não foi exatamente um pedido para implementar esse pedido do Ministério da Saúde, mas o presidente da República, em determinado momento, pediu que o Itamaraty viabilizasse um telefonema dele com o primeiro-ministro".
Renan então perguntou diretamente se houve a participação do presidente. Ernesto confirmou que sim.
Ernesto nega ter atacado a China
Ao longo de toda a fala aos senadores, Ernesto negou que a sua atuação à frente do Itamaraty tenha colaborado para os problemas que se instalaram no Brasil em decorrência da pandemia do novo coronavírus.
Questionado sobre os conflitos com a China, Ernesto disse rejeitar a ideia de que ocorreram atritos diplomáticos com o maior parceiro comercial do país e produtor de insumos vitais à fabricação de vacinas contra o coronavírus.
Na visão dele, apesar do acúmulo de desgastes e reclamações de parte a parte, não houve rusgas. Em um dos episódios de maior tensão, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, tentou atribuir culpa à China pela origem da pandemia.
Ernesto buscou defender Eduardo Bolsonaro em seu depoimento e disse que o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, cometeu um erro ao criticar a família do presidente. O ex-chanceler fez referência a uma postagem compartilhada no Twitter de Wanming que afirmava ser a família Bolsonaro o "veneno do Brasil".
Eu não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito em nenhum momento como anti-chinesa. Houve determinados momentos, como se sabe, por notas oficiais, do Itamaraty, eu, por minha decisão, nos queixamos dos comportamentos da embaixada ou do embaixador da China em Brasília, mas não houve nenhuma declaração que se possa chamar de anti-chinesa. Então não há nenhum impacto de algo que não existiu"
Ernesto Araújo
As declarações irritaram o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, Omar Aziz (PSD-AM), que acusou o depoente de mentir em relação ao tema dos impasses com a nação asiática.
O parlamentar mencionou um artigo publicado por Ernesto —um dos principais seguidores do ideário do guru de extrema-direita Olavo de Carvalho—, no qual ele cunha o termo "comunavírus" e insinua que a pandemia seria uma janela para implementação do comunismo.
"Você fez uma alusão, erroneamente, em relação a que a pandemia era para ressuscitar o comunismo, porque deixa as pessoas em casa, dependendo do Estado, e uma série de coisas. Quer dizer, na minha análise pessoal, vossa excelência está faltando com a verdade. Então, eu peço que não faça isso", declarou Aziz ao repreender o ex-chanceler.
Ernesto respondeu que o termo "comunavírus" não era uma referência à China, e, sim, uma resposta sua a um livro do filósofo e intelectual de esquerda Slavoj Zizek.
Ernesto defende que Itamaraty não atuou de forma "autônoma"
Logo no início da fala, Ernesto fez questão de dizer que "o Itamaraty atua e atuou como parte do governo federal, dentro da sua esfera legal de competências, em condenação com outras pastas, nesse caso, muito especialmente, o Ministério da Saúde, e não de maneira avulsa ou autônoma".
Ao longo do depoimento, o ex-chefe do Itamaraty disse que, de acordo com o seu entendimento, a pasta deu apoio ao Ministério da Saúde nas tratativas para a importação de vacinas, inclusive com a China —país de origem da Sinovac, parceira do Instituto Butantan no desenvolvimento e na fabricação da vacina CoronaVac.
Segundo ele, antes de a pandemia ser declarada no início de 2020, o órgão havia prospectado postos no exterior para irem em busca medicamentos e vacinas contra a covid-19, a pedido do Ministério da Saúde.
Na avaliação de parte dos senadores, o então chanceler não acionou o Itamaraty como deveria para pedir ajuda a outros países. A diplomacia sob sua gestão, que promoveu uma guinada ultraconservadora no ministério, foi contestada até dentro da pasta.
Ernesto busca se eximir de responsabilização por eventuais erros
Para Ernesto, não seria correto responsabilizá-lo por eventuais erros que tenham ocorrido durante a pandemia.
"Minha responsabilidade como ministro, entendendo que nenhuma. E nada que eu tenha feito pode ser caracterizado, levado a qualquer percalço no recebimento de insumos", disse.
"O Itamaraty acompanhou todo o processo burocrático de liberação das exportações de insumos de vacinas na China, especificamente insumos para as vacinas da AstraZeneca. Isso, basicamente no mês de janeiro. E jamais foi identificada nenhuma correlação entre o atraso que houve e qualquer atuação da minha parte ou qualquer elemento político, digamos assim, oriundo do governo brasileiro."
Ernesto afirmou que o Brasil teria sido o primeiro a receber vacinas da Índia e declarou que o governo atuou desde a definição da Covax Facility, iniciativa da OMS (Organização Mundial da Saúde), Aliança Gavi e CEPI, que trabalha para a aquisição e posterior distribuição de vacinas contra covid-19 para os países mais pobres, em junho de 2020. No entanto, como explicou o colunista do UOL Jamil Chade, os dados contrariam a narrativa do ex-chanceler.
A primeira reunião da aliança de vacinas ocorreu ainda no mês de abril de 2020, sem a presença do Brasil. No encontro, que foi realizado com a OMS e a União Europeia, nenhum diplomata brasileiro fez parte.
Ernesto defendeu nunca ter sido contra a Covax e afirmou que foi o Ministério da Saúde quem definiu que o país teria participação mínima, de 10%, dentro do consórcio internacional de vacinas.
No depoimento, Ernesto disse que não articulou nem agradeceu a Venezuela por doação de oxigênio medicinal ao Amazonas.
Ernesto diz que não comunicou Bolsonaro sobre carta da Pfizer
Ernesto assumiu durante o depoimento à CPI da Covid que não comunicou ao presidente Bolsonaro sobre a carta da farmacêutica Pfizer com propostas de venda da vacina contra a covid-19, enviada a membros do governo em setembro de 2020 após três ofertas ignoradas.
O ex-chanceler justificou que "presumia" que Bolsonaro já tivesse conhecimento da carta, que ficou dois meses sem resposta, segundo o gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, e o ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten, em suas respectivas oitivas à CPI.
Ideia de comitiva a Israel teria partido de Bolsonaro
Um ponto criticado por políticos foi a viagem da qual participou a Israel, entre 6 e 10 de março, para conhecer detalhes de uma vacina em teste e de spray nasal contra a covid-19. A visita foi estimada em ao menos R$ 400 mil, como revelou o UOL, e não resultou em nenhum acordo.
Ernesto Araújo afirmou hoje que a ideia da missão em Israel partiu do próprio presidente Jair Bolsonaro.
Kátia Abreu diz que Ernesto é "bússola" que leva ao "caos"
A presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kátia Abreu (PP-TO), com quem Ernesto não mantém boa relação, afirmou que Ernesto foi uma "bússola" que direcionou o país para o "caos".
Na CPI, Ernesto Araújo argumentou que as ações do presidente Bolsonaro têm sido "sistematicamente atacadas" por correntes políticas a ele opostas e em nenhum outro país existe uma "atmosfera de politização como no Brasil".
Depoimento estratégico para a oposição
A fala do ex-chanceler é uma das peças estratégicas no tabuleiro da oposição ao governo de Jair Bolsonaro. Os parlamentares buscaram reunir evidências de que caberia a atribuição de culpa ao presidente, por ação ou omissão, pelo agravamento da crise sanitária no país.
Já os aliados bolsonaristas e senadores simpáticos ao governo trabalham para blindar Araújo e outros depoentes, a exemplo do ex-ministro da Saúde general Eduardo Pazuello, que comparecerá à Comissão Parlamentar de Inquérito amanhã (19).
A atuação dele à frente do Itamaraty, entre janeiro de 2019 e março deste ano, fez com que o próprio Congresso Nacional se mobilizasse para exigir a sua demissão. Pouco antes de deixar o cargo, ele entrou em rota de colisão com o Senado.
Nas redes sociais, o ex-ministro postou mensagens afirmando que não cedeu a um pedido da senadora Kátia Abreu para acenar a um suposto lobby chinês referente ao leilão do 5G no país. Hoje, ele defendeu ter falado a verdade sobre o assunto.
As primeiras declarações geraram revolta entre os senadores. A manifestação foi o estopim para que o clima ruim à permanência de Ernesto Araújo no Itamaraty se tornasse insustentável. Dessa forma, o próprio ministro entregou a Bolsonaro a sua carta de demissão. Em seu lugar, foi nomeado o embaixador Carlos França.
Questionado por Renan sobre o motivo pelo qual atribui sua demissão do cargo de ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo disse que não foi devido à questão de vacinas. "O presidente me manifestou que haviam surgido, a partir de determinados fatos, dificuldades que poderiam dificultar o relacionamento especificamente com o Senado e, diante disso, me pediu que eu colocasse à disposição o cargo, o que eu fiz."
A reunião da CPI acabou pouco antes das 17h com cerca de oito senadores ainda inscritos para falar. A sessão no plenário do Senado havia sido iniciada e, após comunicação do fato a Omar Aziz, os trabalhos da CPI tiveram de ser encerrados, como de costume.
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