'Corpos pelo chão': a procura em hospital no Rio por mortos em chacina
Falta de espaço no necrotério e corpos em sacos pretos no chão. Um homem que atuou como voluntário no socorro às vítimas da ação policial com ao menos 23 pessoas mortas na Vila Cruzeiro, na zona norte carioca, relatou ao UOL o desespero das famílias no Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, para onde a maior parte das vítimas foi levada.
A chacina, apontada como a segunda mais letal da história do Rio, completa uma semana hoje (31). Unidades de saúde que socorreram as vítimas e a Polícia Militar chegaram a confirmar 26 mortes. Mas a Polícia Civil revisou o número e afirmou que foram 23 —as outras três vítimas seriam de um confronto entre traficantes no Morro do Juramento, a 5 km da Vila Cruzeiro. No massacre da favela do Jacarezinho, em maio do ano passado, 28 pessoas morreram.
Membro do conselho gestor do Hospital Getúlio Vargas, o líder comunitário Luís Cláudio dos Santos, 55, diz que auxilia os funcionários da unidade quando há confrontos com vítimas nas favelas da região. Mas que nunca havia se deparado com uma situação como essa.
Segundo o voluntário, o necrotério estava lotado e os corpos ficaram armazenados em sacos pretos espalhados pelo chão. Ele afirmou ainda que o reconhecimento por parte das famílias precisou ser interrompido para evitar que os cadáveres fossem acidentalmente pisoteados.
Santos afirmou que a a geladeira do necrotério já estava sendo ocupada pelos mortos do próprio hospital. Por isso, disse, os cadáveres das pessoas baleadas na ação policial da Vila Cruzeiro ficaram espalhados pelo chão.
Chegou um momento em que não havia mais condições de deixar os familiares entrarem para fazer o reconhecimento, porque poderiam pisar nos corpos. As famílias estavam desesperadas. Já tive que lidar com outras mortes em operações policiais, mas nunca passei por isso antes."
Luís Cláudio dos Santos, líder comunitário
Procurada, a Secretaria Estadual de Saúde contestou a versão apresentada pelo líder comunitário. "A unidade ressalta que nenhum corpo foi deixado no chão do hospital (…). Os corpos foram levados para o morgue da unidade, um local refrigerado, e colocados em macas enquanto aguardavam a guia de remoção para serem encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML)", disse a pasta, por meio de nota.
O líder comunitário ainda guarda na memória as recordações do atendimento às famílias. Como quando uma mulher que acompanhou uma amiga à procura do corpo de um parente acabou sendo surpreendida ao encontrar o cadáver do próprio marido. Ou o momento em que os funcionários do hospital cogitaram abandonar o plantão com medo de alguma invasão em meio à revolta das famílias.
"As pessoas ali estão sem qualquer tipo de apoio. Todos os baleados que chegam ali no hospital já são tratados como bandidos. Mas às vezes, é uma pessoa inocente que estava na hora errada e no lugar errado. A polícia também matou trabalhadores. Mas a única coisa que a Vila Cruzeiro recebe do Estado é a violência", criticou.
Famílias ouvidas pelo UOL de três dos mortos alegam inocência e pedem por justiça. João Carlos Arruda Ferreira, 16, foi visto pela última vez em uma manifestação de moradores pedindo pelo cessar-fogo na ação policial. Douglas Costa Inácio Donato, 23, era ex-militar da Marinha e deixou um filho de dois meses. Já o mototaxista Ricardo José da Cruz, 27, era casado e tinha três filhas pequenas.
As pessoas eram levadas para reconhecer um corpo. Mas, para isso, elas precisaram ver até 20 cadáveres. Você sabe o que é isso? Sabe o que abrir saco por saco para ver 20 pessoas mortas a tiro no chão de um necrotério? Aí, quando encontravam o seu ente querido se jogavam sobre o corpo todo ensanguentado. As pessoas saíam de lá em estado de choque."
Luís Cláudio dos Santos, líder comunitário
Mais de 180 mortes e 40 chacinas
A operação teve participação do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e da PRF (Polícia Rodoviária Federal), sob a justificativa de impedir o movimento de criminosos ligados ao grupo criminoso CV (Comando Vermelho) da Vila Cruzeiro para a Rocinha, na zona sul do Rio.
Na semana passada, a Polícia Civil informou que 12 policiais militares e rodoviários federais prestaram depoimento e admitiram envolvimento em confrontos que resultaram em dez mortes. As armas foram apreendidas e periciadas.
Em um ano de gestão do governador Cláudio Castro (PL), foram registradas mais de 180 mortes em 40 chacinas, segundo levantamento obtido pelo UOL com dados do Instituto Fogo Cruzado e do Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos), da UFF (Universidade Federal Fluminense). O tráfico na região da Vila Cruzeiro foi alvo de quatro chacinas com 39 assassinatos no mesmo período, ainda de acordo com o estudo.
"Há uma aceleração de intervenção armada e truculenta das polícias nessa região. Alguém está mais seguro na Vila Cruzeiro e na cidade do Rio de Janeiro com essas ações policiais espetacularizadas pelo poder público? É importante pensar políticas de segurança pelo acesso a serviços na cidade", analisa Maria Isabel Couto, diretora de programas do Instituto Fogo Cruzado.
Daniel Hirata, pesquisador do Geni-UFF, atribui a alta ocorrência de chacinas nesse território ao que define como "criminalização" das áreas sob o domínio do tráfico de drogas. "A Vila Cruzeiro é conhecida como uma região sob o domínio do tráfico. Uma das formas de minimizar a violência nesses territórios é dizer que os mortos nas chacinas eram criminosos."
Só em 2021, policiais do Rio de Janeiro mataram 1.356 pessoas, segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública). "Isso equivale a 22% das mortes por intervenção policial do ano passado [em todo Brasil], colocando as polícias cariocas entre as mais letais do país", afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em nota, a Polícia Civil afirma que "na atual gestão, todos os mortos por tiros de policiais civis disparados durante operações foram de criminosos que entraram em confronto com os agentes".
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