Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Partido ao meio, país dá seu primeiro passo de volta ao trivial
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* Rafael Burgos
Vagou sem destino pelo mar, travou a mais árdua das batalhas, nas mãos de deuses escapou ao precipício e, ao fim, voltou para casa como um mendigo. Tal qual Ulisses, personagem da Odisseia, neste domingo (30) o Brasil assiste ao desfecho de sua luta homérica para voltar ao trivial.
Pois é disso que falamos, caro leitor: na vitória em segundo turno do ex-presidente Lula mora todo o cosmo de um país, quando a grandiosidade do desfecho contrasta com a mais prosaica das motivações.
Aos brasileiros que por ora comemoram pelas ruas, se lhes pedimos que, com o olhar, alcancem essa conquista é provável que todos olhem para baixo: pisar firme antes de mirar longe — quando o mais banal torna-se o mais grandioso, eis o nosso heroísmo possível.
Nessa dura caminhada de volta para casa, nos tornamos mais indigentes, mais depressivos, mais intolerantes. E tudo isso, afinal de contas, não foi para vislumbrar a terra prometida, mas para que, no fim do dia, mães pobres possam vacinar seus filhos contra doenças infecciosas.
Tudo isso foi para que o presidente do Brasil não faça propaganda de remédios falsos, convocando o povo para a morte, pois, afinal de contas, tem medo de perder a eleição.
Tudo isso para que o ídolo daquele que foi eleito para governar o Brasil, de preferência, não seja alguém que tinha por costume enfiar ratos na vagina de mulheres em centros de tortura.
Tudo isso para que, ao ver milhares de brasileiros morrerem diariamente numa pandemia, o ministro da Saúde recomende máscaras e distanciamento social, em vez de tomar sol, ficar feliz e fazer exercício.
Tudo isso para que a educação seja conduzida por educadores, e não por uma penca de pastores, capangas e fardados.
Tudo isso para que a política externa brasileira seja conduzida por diplomatas, e não pelos traumas pessoais de um ex-astrólogo.
Tudo isso para que as credenciais do chefe da Fundação Palmares não sejam odiar Zumbi dos Palmares.
Tudo isso para que ter xingado a mais premiada atriz do país não seja um critério de promoção à Secretaria de Cultura.
Tudo isso para que o Ministério do Meio Ambiente seja chefiado por um ambientalista em vez de um acusado de favorecer madeireiros.
Tudo isso para que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de fato, tenha apreço pela mulher, pela família e pelos direitos humanos.
Tudo isso para que o resultado do PIB brasileiro seja comentado pelo próprio presidente da República, e não por um humorista contratado para o seu lugar.
Tudo isso para que a urgência da fome, e não vídeos caseiros de zap sobre urnas, seja o assunto da reunião com embaixadores.
Tudo isso para que a política pública de saúde numa pandemia se baseie em instituições científicas, e não nos comentários de uma ex-atacante da Superliga de Vôlei.
Tudo isso para que uma criança de 10 anos não seja submetida a constrangimento público pelo líder da nação após fazer com ela, em transmissão ao vivo, uma piada de cunho sexual.
Tudo isso para que, em seu discurso de posse, o presidente brasileiro convoque 212 milhões de brasileiros para discutir fome e desigualdade, em vez de 'ideologia de gênero' e 'politicamente correto'.
Tudo isso para que o Estado brasileiro não empregue supremacistas brancos e neonazistas 'zoeiros' em seu quadro de funcionários.
Tudo isso para que o maior parceiro comercial do país não seja alvo de falas racistas de membros do governo brasileiro.
Tudo isso para que "lobo mau" seja apenas um personagem do folclore, e não o adjetivo escolhido por uma ministra de Estado para elogiar o presidente.
Tudo isso para que o Supremo Tribunal Federal não lave as mãos diante de PECs inconstitucionais, pois, afinal de contas, tem medo de sofrer um golpe de Estado.
Tudo isso para que o fomento a clubes de tiro não seja um objetivo estratégico da política nacional de segurança pública.
Tudo isso para que o ocupante do Planalto não estimule uma guerra civil no país ao convocar seus seguidores para uma revolta armada contra autoridades estaduais.
Tudo isso para que o mandatário brasileiro não acredite ser ele, realmente, a Constituição.
Tudo isso para que "não vou esperar foder a minha família" não seja um critério de indicação do chefe da Polícia Federal.
Tudo isso para que, em discurso de campanha, o político eleito ofereça a seus opositores outras opções além de morte ou exílio.
Tudo isso para que o chefe de Estado brasileiro vá à ONU falar sobre os desafios do mundo e a liderança do Brasil, em vez da redução de 1,7% no preço da gasolina em Piraporinha do Norte.
Tudo isso para que os atributos físicos da primeira-dama francesa, bem como da esposa de adversários políticos, não sejam assunto de governo.
Tudo isso para que, após um atentado terrorista com motivações políticas em solo brasileiro, o líder do país não silencie, pois, afinal de contas, tem simpatia pelos terroristas.
Tudo isso para que o ministro da Educação tenha educação. E, de preferência, não distribua bíblias com sua foto em eventos do MEC.
Tudo isso para que, durante uma pandemia mortal, crianças de colo possam utilizar máscaras sem serem violentadas por aquele que ocupa a cadeira presidencial.
Tudo isso para que, na celebração do maior feriado nacional, a autoridade brasileira convoque o povo para um ato cívico, e não para um culto ao seu órgão genital.
Tudo isso para que jornalistas mulheres não sejam acusadas pelo presidente da República de oferecerem sexo em troca de informações.
Tudo isso para que a Fundação Nacional do Índio seja comandada por quem não odeia os povos indígenas.
Tudo isso para que um aliado político do presidente não atire granadas contra a Polícia Federal, logo após caluniar uma ministra do Supremo.
Tudo isso para que, ao ser perguntado sobre um ato terrorista em solo norte-americano, o articulador da política externa brasileira não ameace repeti-lo no Brasil, lamentando o baixo número (5) de policiais assassinados na ocasião.
Tudo isso para que, em uma live para milhões de pessoas, o presidente do Brasil não convoque seus seguidores a invadir leitos de UTI em meio a uma crise sanitária.
Tudo isso para que o chefe de propaganda nazista não inspire um prêmio nacional de cultura.
Tudo isso para que a Ku Klux Klan não seja homenageada por apoiadores do presidente.
Tudo isso para que o Ministério da Economia não seja um cabide de empregos para jovens cuja experiência profissional consiste em ver vídeos sobre bitcoins no YouTube.
Tudo isso para que militares da ativa não ameacem o país com golpes de Estado.
Tudo isso para que, ao visitar o Brasil, um turista japonês não veja o líder daquele país fazer piada com o tamanho de seu pênis.
Tudo isso para que "fritar hambúrguer" não habilite alguém ao cargo de embaixador dos Estados Unidos.
Tudo isso para que as Forças Armadas cuidem daquilo para o qual são "armadas" — a fronteira — e não do processo eleitoral.
Tudo isso para que o chefe da Força Nacional não parabenize a bravura de policiais (ilegalmente) amotinados.
Tudo isso para que o nome de Deus não seja, diariamente, utilizado em vão pelo chefe de um Estado laico.
Tudo isso para que o presidente de um país vizinho não seja falsamente acusado pelo mandatário brasileiro de cometer atos terroristas em metrôs.
Tudo isso para que o lema do Integralismo, o fascismo brasileiro, não seja recuperado pelo governo federal.
Tudo isso para que, ao se reunir com o chefe de Estado português, o mandatário brasileiro tenha assuntos relevantes a se discutir antes de fazer, com ele, piadas de cunho sexual.
Tudo isso para que o ministro da Saúde saiba o que é o SUS.
Tudo isso para que fuzilar adversários políticos não faça parte do vocabulário do presidente.
Tudo isso para que a Procuradoria-Geral da República seja uma instituição republicana.
Tudo isso para que o comandante em chefe das Forças Armadas não convoque as três forças para promoverem um ato terrorista contra o prédio de um Poder da República.
Tudo isso para que o presidente se comunique regularmente com o povo, e não apenas com seus seguidores.
Tudo isso para que o chefe do Legislativo não seja linchado e o seu sucessor, subornado pelo Planalto.
Tudo isso para que, ao encontrar um poderoso homem de negócios norte-americano, o líder brasileiro não ofereça a Amazônia para os Estados Unidos explorarem.
Tudo isso para que o presidente da República não perdoe crimes de um deputado que, por ter ameaçado golpe de Estado, virou seu aliado próximo.
Tudo isso para que, quando questionado sobre compatriotas que morreram torturados pelo Estado brasileiro, o vice-presidente tenha qualquer outra coisa a dizer a suas famílias que não "apurar o quê, os caras já morreram tudo, pô".
Neste 30 de outubro, o país dá o seu primeiro passo de um longo e tortuoso retorno ao trivial. Que seja bem-vindo.
* Rafael Burgos é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É editor da coluna Entendendo Bolsonaro.
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