Jamil Chade

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Reportagem

ONU cobra Brasil por aborto legal após 12 mil meninas serem mães em 2023

Mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães em 2023 no Brasil, num espelho da dimensão da violência contra meninas no país. Ainda que o número represente uma queda significativa em comparação aos dados de 2014, a situação no Brasil é classificada como uma "epidemia" por entidades.

Os dados obtidos com exclusividade pelo UOL são do governo federal, que nesta quinta-feira é alvo de uma sabatina no Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). O Brasil foi cobrado por respostas sobre a capacidade do Estado de garantir o acesso ao aborto legal no país.

A perita Hilary Gbedemah, por exemplo, questionou o governo sobre como tem sido a resposta das autoridades diante da pressão "conservadora" contra a implementação de educação sexual nas escolas. Segundo ela, a taxa de gravidez de meninas - principalmente negras - é "inaceitável e às vezes criminalizada".

A perita Natasha Stott Despoja também soou o alerta sobre a incapacidade do Estado brasileiro de garantir o aborto legal e apontou que o país está entre os locais onde o acesso é mais restrito. Durante a sessão, ela questionou o governo sobre o que tem sido pensado para assegurar esse direito.

Casos emblemáticos de crianças que foram estupradas e tiveram dificuldades em ter acesso aos serviço de aborto legal — em São Paulo, Piauí e Santa Catarina — foram apresentados pela sociedade civil aos peritos da ONU.

O aborto legal é permitido pela lei brasileira e deve ser oferecido gratuitamente pelo SUS. O aborto no país não é considerado crime quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez é resultante de estupro.

Os serviços, porém, não têm sido garantidos, afetando principalmente as mulheres com baixa renda, segundo documentos recebidos pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).

O alerta está em um dos documentos entregues ao peritos, preparados por Defensorias Públicas estaduais. Apesar da obrigação assumida pelo Estado de acesso ao aborto legal, a realidade é que as brasileiras enfrentam diversas barreiras para exercer seus direitos.

Os dados go governo federal revelam que houve uma queda substancial no número de crianças que se tornaram mães no Brasil na última década. Em 2014, foram 24,2 mil partos entre meninas de 8 a 14 anos de idade — número que caiu quase pela metade no ano passado

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A questão do parto de crianças também foi alvo de uma denúncia por parte das entidades de direitos humanos. Em documento entregue ao comitê da ONU, organizações destacaram, com base nos dados do DataSUS, que nos últimos dez anos e 204,4 mil crianças e adolescentes se tornaram mães — 74,2% delas eram negras.

O documento foi assinado pelas entidades Anis - Institute de Bioética, Abia, Conectas Direitos Humanos, CDD, Cladem, Criola e Sexuality Policy Watch (SPW), entre outras.

Situação de epidemia

Durante as reuniões preparatórias para a sabatina de hoje, entidades da sociedade civil estiveram com as peritas do Comitê da ONU e alertaram para uma "epidemia" de partos entre crianças, incapazes de serem atendidas por serviços médicos habilitados a realizar abortos legais.

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Tatiana Fortes, coordenadora do Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher) e que representou a Defensoria Pública do estado de São Paulo, disse que, apesar de o Brasil afirmar que está se esforçando para manter o acesso ao aborto seguro e legal, os resultados revelaram inconsistências e barreiras significativas que impedem os direitos das mulheres — incluindo um cenário de saúde inacessível.

Os dados revelam que houve uma média anual de 1.800 diagnósticos de "abortos por razões médicas e legais" em 2019 —representando 3% das gestações resultantes de estupro.

Em visitas a unidades de saúde em São Paulo, verificou-se a ausência de serviços equipados para realizar o aborto legal após 22 semanas de gestação, o que representa uma barreira, especialmente para mulheres em situação de maior vulnerabilidade..

Outra questão crítica foi a proteção da privacidade e da confidencialidade das mulheres. De 2017 a 2023, 37 habeas corpus foram apresentados com o objetivo de interromper processos criminais em andamento contra mulheres pela suposta prática de aborto. Em 25 desses casos, a investigação criminal e o processo judicial foram iniciados devido a uma violação do sigilo profissional de saúde.

As entidades ainda alertaram que meninas com menos de 14 anos de idade representavam cerca de 86% dos casos de estupro — mas apenas uma pequena parcela dela foi submetida a abortos legais, forçando muitas famílias a recorrerem a procedimentos inseguros ou a aceitar uma gravidez indesejada, perpetuando ciclos de pobreza.

Ministra admite retrocesso e diz ter "vergonha" de taxa de mortalidade materna

Em sua fala durante a sessão do Comitê, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, explicou que o governo está "trabalhando para assegurar às mulheres o direito à saúde reprodutiva". Mas admitiu que "esse é um tema que retrocedeu nos últimos dez anos". "E eu estou falando do aborto que é previsto na lei, ainda de 1940. Temos grandes dificuldades", lamentou.

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Segundo ela, quando assumiu a pasta, descobriu que grande parte dos serviços de apoio às mulheres nesta situação "não existia". "Essa é a realidade que o Brasil vive", disse.

Cida alertou como, para os conservadores, "o corpo da mulher é a pior coisa que há". "Mulher é só para reproduzir", disse.

Ela acusou o governo anterior a ter um programa para garantir enxoval para as meninas que engravidavam. "Isso não pode ser negado, está acontecendo. É grande desafio no Brasil e precisamos ter esse debate", defendeu.

A ministra alertou sobre a perseguição contra profissionais que fazem abortos e apontou que, em alguns casos, foram "provavelmente" membros de equipes de hospitais que alertaram os grupos ultraconservadores sobre o caso de crianças que iriam passar por procedimentos para retirar o feto, depois de um estupro. "O governo não nega a realidade", disse.

Ela ainda se disse "envergonhada" pelas taxas de mortalidade materna.

Segundo ela, as principais barreiras encontradas pelas brasileiras hoje para acessar este direito são:

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- falta de informação sobre direitos e como acessá-los;
- escassez de serviços de referência e profissionais capacitados;
- exigências desnecessárias feitas pelos profissionais desses serviços;
- e alegação de objeção de consciência por parte desses profissionais.

Segundo ela, em janeiro de 2023, para enfrentar barreiras impostas nos últimos anos, o Brasil anunciou:

- o desligamento do país do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família;
- a Revogação da Portaria 2.561, de 2020, que orientava profissionais da saúde a comunicar à autoridade policial os casos de aborto legal atendidos;
- e a revisão de normas, portarias e diretrizes relacionadas à saúde reprodutiva para adequação à legislação vigente, a partir da promoção dos direitos humanos e de diretrizes científicas.

Ela ainda apontou que o governo federal ampliou o acesso a métodos contraceptivos. "O número de procedimentos para inserção de DIUs na saúde pública entre 2021 e 2023 aumentou 176%", disse.

"Além disso, o Estado vem investindo na qualificação de profissionais do Programa Mais Médicos, a partir da sensibilização e estímulo à oferta de planejamento reprodutivo e familiar e contracepção na Atenção Primária à Saúde", explicou.

'Não bastar só falar do aborto legal'

Em entrevista antes do encontro, Cida Gonçalves afirmou que sabe que o tema do acesso ao aborto legal estará entre as preocupações das peritas internacionais, Sua proposta é que não se pode apenas tratar do aborto legal.

Precisamos trabalhar a partir do atendimento às mulheres e meninas vitimas de violência sexual. Se isso ocorre dentro de 72 horas do ato, há como trabalhar a contracepção de emergência que evita a gravidez. Não é só garantir o aborto legal, mas todo o processo.
Cida Gonçalves, ministra das Mulheres

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, durante o lançamento de plano de prevenção ao feminicídio
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, durante o lançamento de plano de prevenção ao feminicídio Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom - 19.mar.2024/Agência Brasil
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Patrulha ideológica e 'ódio contra a mulher'

A chefe da pasta, porém, destaca a existência de sérios desafios nesse campo. O primeiro deles é o assédio contra médicos por aqueles contrários ao aborto.

"Há uma patrulha ideológica que vamos ter de vencer para ampliar os serviços de atendimento para as mulheres vítimas de violência sexual. Esse é o maior desafio para poder avançar na política pública", disse, apontando para a rápida reação de movimentos conservadores para fazer pressão sobre famílias. "Hoje, não estamos conseguindo."

Outro aspecto enfatizado pela ministra é a "cultura do ódio que coloca a mulher como um objeto". Segundo ela, o volume de crianças grávidas é resultado de um contexto nacional de violência contra a mulher. Essa será uma das mensagens que ela levará ao Comitê da ONU.

"Temos hoje um país dividido, onde o ódio transparece para as mulheres de forma muito forte, por meio do aumento da violência sexual, do feminicídio, de todas as violações que sofremos", disse. "Não é apenas um problema de governo, mas da sociedade que nos coloca num lugar complicado para avançar na pauta das mulheres."

O desafio não é só avançar na lei e na vontade politico, mas também mudar o comportamento da sociedade. Precisamos estruturar o país para pensar na igualdade de gênero. Se não, não daremos conta.
Cida Gonçalves, ministra das Mulheres

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Para ela, não basta apenas tratar de aspectos como o feminicídio ou violência sexual de forma isolada. "Eles têm uma raiz e ela é o ódio contra a mulher. A brincadeira e o preconceito é o ódio que coloca a mulher no devido lugar. Esse é o debate que vamos ter de fazer", disse.

Em seu discurso, Cida Gonçalves afirmou que recebeu sua pasta praticamente esvaziada. "Em janeiro de 2023, após seis anos de retrocesso na execução das políticas públicas para as mulheres, desde a interrupção misógina do mandato da presidenta eleita Dilma Rousseff, em 2016, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou pela primeira vez na história do país um Ministério das Mulheres", disse.

Segundo ela, em 2015, o Projeto de Lei Orçamentária Anual era de 236 milhões de reais para serem executados pela então Secretaria de Políticas para as Mulheres. Em 2023, foram deixados para o governo eleito somente 23 milhões de reais.

Ao UOL, ela explicou que, desse total, 11 milhões de reais ainda iriam para administração da pasta. Mas destaca a tentativa de restabelecer o orçamento.

"Por meio de esforços conjuntos com o Poder Legislativo, o Poder Executivo elevou o orçamento para 149 milhões de reais. E, em 2024, o recurso foi elevado novamente, para 480 milhões de reais", disse.

Segundo ela, no exercício de 2023, em todo o governo federal, o valor empenhado em gastos exclusivos e não exclusivos que beneficiaram as mulheres foi de 216 bilhões de reais.

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"Os últimos anos foram marcados pelo negacionismo científico e pelo avanço das pautas conservadoras, especialmente durante a pandemia de COVID-19. Ainda colhemos as consequências dessa linha política que nega direitos, especialmente a grupos excluídos", denunciou, numa referência aos anos do governo de Jair Bolsonaro.

Em sua fala, ela listou os programas que foram retomado, incluindo o Programa Mulher Viver sem Violência que, segundo ela, havia sido descaracterizado. Ela também destacou o Ligue 180 e a Casa da Mulher Brasileira.

Reportagem

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