Em CPI, Pazuello omite e distorce fatos sobre vacinas, SUS e STF
O ex-ministro da Saúde e general do Exército Eduardo Pazuello omitiu e distorceu fatos sobre a negociação de vacinas para a covid-19, a eficácia do atendimento do SUS durante a pandemia e o teor de uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o combate ao coronavírus.
Pazuello omitiu detalhes sobre os acordos inicialmente não fechados pelo governo federal para a compra de doses da CoronaVac e da Pfizer; afirmou que o SUS cuidou de "todos os cidadãos", quando houve inúmeras notícias sobre UTIs lotadas, falta de oxigênio e escassez de medicamentos; e distorceu a decisão do STF que definiu competência compartilhada entre União, estados e municípios para ações de combate à pandemia. O UOL Confere está checando as declarações do ex-ministro na CPI. Veja abaixo:
Pazuello mente sobre ordem de Bolsonaro contra Coronavac
Nunca o presidente da República mandou eu desfazer qualquer contrato, qualquer acordo com o Butantan
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Em 7 de outubro de 2020, o Ministério da Saúde enviou ofício ao Instituto Butantan demonstrando a intenção de adquirir 46 milhões de doses da Coronavac. No dia 20 daquele mês, Pazuello anunciou que o governo compraria as doses.
Mas, no dia seguinte, Bolsonaro desautorizou publicamente o então ministro, afirmando que não compraria a vacina. Pazuello voltou atrá e declarou, ao lado do presidente, que "um manda e o outro obedece". Um contrato para a compra de doses da Coronavac só foi assinado em janeiro deste ano, após críticas e reações de governadores.
Hoje, na CPI, Pazuello disse que a decisão de Bolsonaro contra o acordo da Coronavac não foi formalizada porque "nunca foi efetuada a ordem". O ex-ministro classificou a ordem de Bolsonaro como "apenas uma posição do agente político na internet".
Pazuello distorce teor de reunião com Pfizer
Eu sou o dirigente máximo, eu sou o decisor, eu não posso negociar com a empresa [Pfizer]. Quem negocia com a empresa é o nível administrativo, não o ministro. (...) Eu recebo o presidente da Pfizer socialmente, junto com a administração, mas a negociação é feita no nível da equipe de negociação.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Apesar de afirmar que não participou de negociações para compra de vacinas da Pfizer e só recebeu representantes da farmacêutica "socialmente", Pazuello esteve ao menos uma vez com a presidente da empresa no Brasil, Marta Díez, em reunião na qual foram discutidas tratativas para o acordo com o governo, segundo o próprio Ministério da Saúde.
O encontro virtual com Díez aconteceu em 3 de março de 2021, indica a agenda oficial do ex-ministro. No mesmo dia, Pazuello também se reuniu com Roy Benchimol, presidente da Janssen do Brasil, braço farmacêutico da Johnson & Johnson. Posteriormente, o governo Bolsonaro anunciou a compra de 100 milhões de doses da vacina da Pfizer e 38 milhões do imunizante da Janssen.
No mesmo dia dos encontros, o Ministério da Saúde divulgou nota na qual afirma que Pazuello discutiu o "possível cronograma e estimativa de entrega das vacinas da Pfizer", ou seja, participou de tratativas que antecederam o acordo final.
"A proposta de cronograma de entrega é uma boa proposta e, a partir de agora, a gente segue para fechar o contrato o mais rápido possível. Agradeço à equipe da Pfizer que está à disposição aqui e vamos juntos cumprir essa missão de vacinar o povo brasileiro", declarou o ex-ministro, segundo a nota.
Ainda de acordo com o ministério, a presidente da Pfizer no Brasil, Marta Díez, disse que os representantes da empresa estavam "felizes em dar continuidade a essa negociação", indicando que a reunião não foi um mero encontro social.
Documento desmente Pazuello sobre crise em Manaus
Eu tomei conhecimento de riscos em Manaus no dia 10 [de janeiro], à noite, numa reunião.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Um relatório do Ministério da Saúde assinado pelo próprio Pazuello desmente o que ele disse à CPI da Covid sobre o momento em que ficou sabendo do risco de falta de oxigênio em Manaus. A capital do Amazonas e cidades do interior do estado conviveram com estoques insuficientes do insumo hospitalar em janeiro deste ano, o que resultou em aumento de 41% de mortes no pico da crise.
Segundo o documento, o ministério então comandado pelo general soube da "gravíssima situação dos estoques de oxigênio hospitalar em Manaus, em quantidade absolutamente insuficiente para o atendimento da demanda crescente" no dia 8 de janeiro, e não no dia 10 como afirmou o ex-ministro à CPI. O ministério, diz o relatório, tomou conhecimento do problema por meio de um e-mail enviado por Petrônio Bastos, gerente executivo da White Martins na região.
O relatório foi revelado pela Agência Pública depois de ser enviado à Casa Civil, em resposta a um pedido de informações diante de medidas judiciais contra o governo federal durante a crise no Amazonas.
O próprio Pazuello, em declaração a jornalistas, já admitiu que soube da possibilidade de falta de oxigênio no Amazonas no dia 8, citando a mensagem da White Martins. "No dia 8 de janeiro, nós tivemos a compreensão, a partir de uma carta da White Martins, de que poderia haver falta de oxigênio se não houvesse ações para que a gente mitigasse este problema", declarou o ministro em uma entrevista coletiva.
Ministério recebeu oferta dos EUA para transporte de oxigênio
Nunca me chegou esta oferta [de ajuda dos EUA] para que eu a aceitasse ou não (...). Eu tenho a informação --isto é só um dado; eu não tenho como confirmá-la-- de que a oferta nunca foi de doação de avião para nós, porque, obviamente, aquilo teria que ser contratado de alguma forma oficial.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Apesar de Pazuello usar o termo "doação", a pergunta feita a ele não tratava disso, mas da ajuda oferecida pelos EUA para o transporte de oxigênio para o Amazonas em janeiro. E o Ministério da Saúde recebeu, sim, ofertas de pelo menos três aviões para esta finalidade, sendo duas aeronaves da ONU e uma dos EUA, noticiou o UOL em 25 de janeiro. Naquele momento, segundo a reportagem, a autorização para o uso dos aviões estava há mais de uma semana sob análise do governo federal.
Em março, a revista "Crusoé" noticiou que, em 26 de janeiro, o governo não aceitou a oferta dos EUA porque teria que pagar o aluguel da aeronave e avaliou que "os esforços nacionais foram suficientes para normalizar o suprimento de oxigênio no Amazonas". Estas informações estão em documento assinado pelo então secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, obtido pela revista.
Aplicativo TrateCov entrou em operação
O aplicativo [TrateCov] - o aplicativo, não, a plataforma, não é um aplicativo - nunca entrou em operação
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Apesar da negativa de Pazuello, o Ministério da Saúde, o Ministério da Casa Civil e a TV Brasil divulgaram o lançamento do TrateCov em janeiro, como noticiou a colunista do UOL Cristina Tardáguila. As informações do próprio governo na época diziam que "342 profissionais" já estavam "habilitados" a usar o TrateCov —ou seja, a plataforma entrou em operação. Além disso, o acesso ficou liberado para qualquer pessoa por ao menos três dias. A plataforma recomendava o uso, no tratamento da covid-19, de medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença.
Bolsonaro interferiu na gestão de Pazuello
Em momento algum, o presidente da República me orientou ou me encaminhou ou me deu ordem para fazer nada diferente do que eu já estava fazendo -- nada, absolutamente nada.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Como mostramos acima, Bolsonaro interferiu diretamente na gestão de Pazuello ao desautorizar o compromisso assumido pelo então ministro para a compra de doses da Coronavac, em outubro de 2020. Na ocasião, Pazuello chegou a declarar publicamente que "um manda, outro obedece".
Governo demorou para fechar acordos por vacinas
Mesmo enquanto não se falava em imunizantes, o governo federal já estava agindo de forma rápida e estávamos em contato com todos os fabricantes de vacinas em desenvolvimento no mundo.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
O processo de aquisição de algumas vacinas para covid-19 foi lento e marcado por negativas ou omissões. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou apenas um acordo para comprar e produzir vacinas nos meses iniciais da pandemia. A aposta única, feita em julho de 2020, foi a vacina da AstraZeneca/Oxford.
Em ao menos sete ocasiões entre aquele mês e janeiro deste ano, o presidente minimizou a eficácia ou atacou a CoronaVac antes de autorizar a compra da vacina produzida pelo Instituto Butantan com ingredientes da China. Bolsonaro também desautorizou Pazuello após o então ministro anunciar a compra de milhões de doses da Coronavac em outubro de 2020.
Uma primeira oferta feita ao governo para adquirir 160 milhões de doses do imunizante foi recusada em julho, disse o presidente do Butantan, Dimas Covas, em fevereiro deste ano. A oferta foi feita novamente em agosto, outubro e dezembro, sem resposta da pasta.
O governo também ignorou cinco ofertas da Pfizer em 2020, afirmou o presidente da empresa na América Latina, Carlos Murillo, em depoimento à CPI da Covid.
Além disso, o governo Bolsonaro ficou fora da primeira aliança internacional para acelerar a produção de uma vacina, em maio de 2020. Só em março deste ano o Brasil aderiu oficialmente à Covax Facility, uma parceria da OMS com outras organizações para acesso a vacinas. Com isso, não recebeu as primeiras entregas do consórcio internacional.
TCU rebate versão de Pazuello sobre Pfizer
Senhores, essa proposta [da Pfizer] foi, apesar de eu achar pouquíssima a quantidade (...) nós seguimos em frente (...). Mandamos para os órgãos de controle, a resposta foi: 'Não assessoramos positivamente. Não deve ser assinado'. A CGU, a AGU, todos os órgãos de controle, TCU.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
O TCU (Tribunal de Contas da União) divulgou nota hoje (19) rebatendo a versão de Pazuello sobre a demora nas tratativas para a compra da vacina da Pfizer. Segundo o órgão, "em nenhum momento, seus ministros se posicionaram de forma contrária" à contratação da Pfizer. "O Tribunal também não desaconselhou a imediata contratação em razão de eventuais cláusulas contratuais", diz o comunicado.
STF não restringiu ação do governo federal contra Covid
A decisão do STF em abril de 2020 limitou ainda mais a atuação do governo federal nessas ações. Assim, não há possibilidade de o Ministério da Saúde interferir nas execuções das ações de estado da saúde sem usurpar as competências dos estados e municípios.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Não é verdade que o STF (Supremo Tribunal Federal) limitou a atuação do governo federal no combate à covid-19. O Supremo determinou que as medidas para enfrentar o coronavírus deveriam respeitar a autonomia de estados e municípios, mas que a competência entre os entes federativos —União, estados, Distrito Federal e municípios— é concorrente, ou seja, todos eles têm o dever de tomar providências para enfrentar a pandemia.
O Supremo levou em conta o artigo 23 da Constituição, que afirma: "é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...) cuidar da saúde e assistência pública". Na prática, o STF decidiu que além do governo federal, os estados, os municípios e o Distrito Federal também tinham autonomia para emitir decretos e normas de saúde pública.
Falta de leitos, remédios e equipamentos levou a mortes
Cuidamos de todos os cidadãos através do SUS
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
O SUS (Sistema Único de Saúde) não deu conta do tamanho da demanda decorrente da pandemia de covid-19 e faltaram leitos, remédios, oxigênio e equipamentos em unidades por todo o país, por vezes levando a mortes de pacientes. Em março, por exemplo, um jovem de 22 anos morreu em São Paulo após passar por quatro unidades de saúde sem leitos.
Um dos momentos mais críticos e reveladores da crise no SUS durante a pandemia foi a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, onde o sistema público de saúde entrou em colapso no começo do ano.
Governo não cumpriu metas de testagem
A estratégia de testagem [de Covid-19] foi um dos pilares do combate à pandemia.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
O governo não cumpriu metas de testagem e deixou, por mais de uma ocasião, testes vencerem por não serem distribuídos e usados em tempo. A testagem em massa da população foi uma medida recomendada por organizações sanitárias e epidemiologistas desde o início da pandemia.
Em maio de 2020, o governo anunciou o programa Diagnosticar para Cuidar, que previa 46 milhões de testes em 2020, sendo 70 mil por dia nos períodos mais críticos da doença. No entanto, segundo a plataforma LocalizaSUS, do próprio Ministério da Saúde, apenas 31 milhões de testes foram aplicados até agora, considerando ainda os cinco primeiros meses de 2021.
Além disso, em documento entregue pela Ministério Público Federal à CPI na semana passada, o governo admite perder mais de 2 milhões de testes de covid que estão estocados com prazo de vencimento ainda em maio.
Em dezembro, pelo mesmo motivo, a Anvisa precisou prorrogar a validade de 7 milhões de testes estocados. Antes disso, em outubro, o então ministro se esquivou de responder perguntas sobre milhões de testes prestes a expirar, que foram revelados pelo jornal "O Estado de S. Paulo".
Brasil ainda vacina pouco em termos proporcionais
Hoje, o Brasil figura entre os países que mais imunizaram no mundo. Ficamos atrás apenas de EUA, China e Índia.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Em termos absolutos, o Brasil é hoje o quarto país que mais vacinou no mundo, atrás da China, Estados Unidos, Índia e Reino Unido, segundo o Our World in Data, site que organiza este ranking com base em dados oficiais de todo o mundo.
Em termos proporcionais, no entanto, o Brasil é o 84º, com 17,3% tendo recebido ao menos uma dose do imunizante até ontem (18). O ranking do Our World in Data inclui países e territórios.
Ministério estimulou uso da hidroxicloroquina
Eu não recomendei o uso da hidroxicloroquina nenhuma vez.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
Embora o ex-ministro da Saúde tenha afirmado que jamais recomendou o uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, o ministério então comandado por ele emitiu orientações que estimulavam o uso do medicamento e da cloroquina durante boa parte da pandemia do coronavírus.
Elas ficaram no ar no site do Ministério da Saúde por quase um ano, desde a publicação de uma primeira nota técnica sobre o assunto em 20 maio de 2020. Com o título "Orientações do Ministério da Saúde para o manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19", a última versão do documento foi a nota técnica 17/2020, de 30 de julho. Ela foi apagada do site às vésperas da instalação da CPI da Covid, mas ainda pode ser lida aqui.
Ao longo de 40 páginas, a nota indica doses dos medicamentos em casos leves, moderados e graves da Covid-19. Como justificativa, o ministério afirma levar em consideração "a larga experiência do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de outras doenças infecciosas e de doenças crônicas no a?mbito do SUS e a inexistência, até o momento, de outro tratamento eficaz disponível para a Covid-19".
No entanto, já antes da publicação da nota técnica, estudos feitos com milhares de pessoas já apontavam a ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina contra o novo coronavírus. O UOL publicou reportagens sobre o assunto (veja aqui e aqui)
Em seu depoimento à CPI, Pazuello declarou que a nota não recomendava o uso dos medicamentos. "Ela faz um alerta. Ela apenas orienta doses seguras caso o médico prescreva. Isso não é uma recomendação por protocolo", alegou.
De fato, o documento traz um aviso em sua primeira página, informando que o caráter da nota é "informativo" e que não se trata de um protocolo clínico, cabendo ao médico avaliar a prescrição em cada caso específico.
Ainda assim, ela foi criticada por especialistas e sua revogação foi solicitada em janeiro pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). O pedido foi ignorado pela gestão Pazuello. O colegiado, que reúne representantes de usuários, trabalhadores, gestores e prestadores de serviços do SUS, vinha desde maio de 2020 pedindo a suspensão das orientações que estimulavam o uso da cloroquina e hidroxicloroquina apesar das evidências científicas de riscos e ineficácia dos medicamentos contra a Covid.
Bolsonaro queria ministro pró-cloroquina
Em hipótese alguma [fui nomeado com a condição de recomendar 'tratamento precoce']. O presidente nunca me deu ordens diretas para nada.
Eduardo Pazuello em depoimento à CPI da Covid
O apoio ao suposto "tratamento precoce" para a covid-19 pode até não ter sido condição para Pazuello comandar o Ministério da Saúde, mas o general assumiu o cargo interinamente, em maio de 2020, no momento em que Bolsonaro manifestava publicamente sua intenção de nomear um ministro "alinhado" com sua defesa da hidroxicloroquina.
Não por acaso, o antecessor de Pazuello no ministério, Nelson Teich, disse na CPI da Covid que a discordância com Bolsonaro em relação ao uso de cloroquina pesou para que deixasse a pasta.
Dias após assumir interinamente, Pazuello liberou o uso da cloroquina em pacientes com sintomas leves da covid-19, medida determinada por Bolsonaro e que Teich havia se recusado a cumprir.
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