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No Dia do Índio, discussão sobre demarcação é considerada "retrocesso"

Índios forçaram encerramento de sessão na Câmara dos Deputados, em Brasília, na terça-feira - Zeca Ribeiro/Agência Câmara
Índios forçaram encerramento de sessão na Câmara dos Deputados, em Brasília, na terça-feira Imagem: Zeca Ribeiro/Agência Câmara

Julia Affonso

Do UOL, no Rio

19/04/2013 06h00

Criado pelo ex-presidente Getúlio Vargas em junho de 1943, o Dia do Índio, comemorado nesta sexta-feira (19), completa 70 anos em 2013.

Em meio aos recentes episódios envolvendo a demarcação de terras na Bahia, mortes no Mato Grosso do Sul e a reintegração de posse pelo Estado do Rio de Janeiro da Aldeia Maracanã, chama a atenção de lideranças indígenas a discussão da PEC 215/2000 no Congresso Nacional, que transfere do poder Executivo para o Legislativo a decisão final sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil. A proposta é considerada por representantes dos índios como um "trator" passando sobre os direitos indígenas e um "retrocesso".

Segundo o Censo 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), existem hoje, no Brasil, 896.917 índios de 305 etnias diferentes, que falam 274 línguas e vivem em sua grande maioria nas regiões Norte e Nordeste. A terra de maior população indígena é a dos yanomâmis, no Amazonas e em Roraima, onde estão 25,7 mil índios.

Os índios representam 0,42% da população brasileira e ocupam 13% do território nacional em 505 terras reconhecidas –distribuídas por 106,7 milhões de hectares. "O padrão de ocupação do território dos índios é diferente dos demais cidadãos brasileiros. Eles precisam de rios, de florestas, de plantações para sobreviver. As aldeias que têm 20 mil pessoas precisam de lugares monstruosos para sobreviver", explicou o professor José Ribamar Bessa, especialista em estudos dos povos indígenas, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). "Os latifúndios, que também são imensos, servem a poucas pessoas."

População indígena no Brasil

Brasil896.917
Norte342.836
Nordeste232.739
Sudeste99.137
Sul78.773
Centro-Oeste143.432

"Aproveitamos o Dia do Índio para chamar a atenção para os nossos problemas. As terras da Raposa Terra do Sol foram demarcadas, mas nós somos solidários a todos os outros povos indígenas do Brasil que convivem com esse problema. Sem terra, não temos vida, alimento", explica o índio Marcio Nicacio, da etnia watichana, coordenador-geral do Conselho Indígena de Roraima, a maior organização de índios do país, com 55 mil filiados, na divisa do Estado com Venezuela e Guiana.

"Aqui no Estado, nós não vamos comemorar esse dia, com tantos problemas acontecendo, com esses projetos de leis [PEC 215/2000] contra os índios. Começaram ontem [quinta-feira] e vão até o dia 20 de abril duas manifestações contra o descaso aos índios no Estado", afirmou. "Essa PEC vai passar como um trator em cima dos índios. A decisão sobre a demarcação não pode ficar com o Congresso, essa função é da Funai. É uma falta de respeito com os índios brasileiros."

Na última segunda-feira (15), lideranças indígenas entregaram ao governo federal uma lista de reivindicações, de acordo com a Secretaria-Geral da Presidência da República. Entre os itens, estava a questão mais importante para os índios atualmente: a demarcação de terras indígenas, garantidas pela Constituição de 1988.

"Em nenhum momento da história o reconhecimento da terra foi fácil, mas, desde 2007, os conflitos ficaram mais intensos, porque a Funai [Fundação Nacional do Índio] começou a demarcar terras das regiões Nordeste, Centro-Sul e Sudeste, onde há uma grande quantidade de latifúndios e fortes barreiras do setor do agronegócio, que dependem desses grandes terrenos. Essas áreas têm uma população indígena muito volumosa e as terras são irrisórias", explica o diretor de proteção territorial da Funai, Aluisio Azanha.

"Recentemente, no Rio Grande do Sul, houve uma demarcação na região de Erechim que causou comoção na população, como se aquilo inviabilizasse o desenvolvimento econômico do Estado. Somando-se as terras demarcadas, não chegava-se a 0,25% da superfície do Rio Grande do Sul. Não inviabiliza a produção do Estado, mas contraria interesses econômicos desses setores, que formam a maior parte da bancada do Congresso."

A demarcação de terras faz parte do artigo 231 da Constituição de 1988. As terras continuam pertencendo à União, mas são de usufruto dos indígenas.

Maiores populações indígenas do Brasil

Tikúna46.045
Guarani-kaiowá43.401
Kaingang37.470
Makuxí28.912
Terena28.845
  • Fonte: Censo 2012 - IBGE

"Até a chegada do Cabral, em 1500, não havia nenhum proprietário de terra que não fosse indígena. As terras habitadas por eles não foram compradas, foram apropriadas pelos estrangeiros e com muita violência. A Constituição de 1988 diz aos índios: ‘Vocês perderam a maior parte do território nacional, e não podemos fazer mais nada para devolver. Mas nós não vamos mais admitir o processo selvagem de invasão da terra de vocês’", afirmou o professor Bessa. “Não é um gesto de generosidade, o Estado tem uma dívida com os índios. A PEC 215/2000 pretende passar o controle das terras da Funai para o Congresso. Isso é um retrocesso."

Para o diretor da Funai, uma saída poderia ser, em alguns casos, o pagamento de indenização do valor da terra nua para os latifundiários. "A PEC não vai diminuir os conflitos fundiários, vai criar mais um obstáculo na luta pela demarcação de terras. A bancada é majoritariamente formada pelo setor ruralista, não tem uma representação indígena. Vai paralisar a demarcação”, disse Azanha. “Pensa-se na indenização do valor da terra nua. Em vez de pagar-se somente as benfeitorias feitas no terreno, seria possível, em determinadas situações, o pagamento da terra, para evitar a violência. Mas isso ainda está em estudo, demandaria uma mudança constitucional."

Violência

Segundo o Ministério Público Federal, a maior consequência da falta de terra é a violência. As mortes ocorrem na luta pela terra, após ocupações de áreas reivindicadas como territórios indígenas, geralmente por ação de grupos que resolvem fazer justiça com as próprias mãos, ou pela criminalidade gerada pela pobreza associada à superlotação das reservas. De acordo com o Censo 2010, 52,9% dos índios não têm qualquer tipo de rendimento, proporção ainda maior nas áreas rurais: 65,7%.

Quem mais sofre é a etnia guarani-kaiowá, que tem cerca de 44 mil índios concentrados no cone sul do Mato Grosso do Sul.  Em fevereiro deste ano, um menino de 15 anos foi torturado e assassinado na área de Caarapó, sob suspeita de execução. O corpo havia sido encontrado em uma estrada que separava a aldeia de fazendas da região.

De acordo com informações do MPF, a taxa de homicídio entre os guarani-kaiowás do Estado é de cem para cada 100 mil habitantes, quatro vezes a média nacional. “Um índice superior ao do Iraque. Você tem uma população submetida a um índice de violência extremo”, afirmou o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, em nota do MPF.

Casos recentes

No último domingo (7), pelo menos 30 índios tupinambás invadiram um hotel de luxo em Una, no sul da Bahia, reivindicando a demarcação de terras na região. Segundo a Funai, o reconhecimento do território no local está sendo realizado.

"A demarcação é um processo complexo e moroso, demora às vezes dez, 15 anos, e é muito importante para a sociedade. É um ganho para todo o Estado. Há um ordenamento territorial, uma proteção ao meio ambiente e o elemento da diversidade, uma riqueza para a formação de uma sociedade pluriética", explica Azanha, diretor da Funai.

No Rio de Janeiro, quase um mês após a saída da Aldeia Maracanã, os índios que aceitaram um acordo com o governo do Estado continuam morando em contêineres, em Jacarepaguá, zona oeste da cidade.

Segundo a Secretaria de Assistência Social, responsável pelo alojamento e pela criação do Centro de Referência da Cultura do Povo, as obras das futuras moradias e do centro serão feitas no mesmo terreno em que eles estão.

"Esperamos o mais rápido possível que isso se resolva. Nós dependemos  do artesanato para sobreviver, precisamos mandar dinheiro para nossa família em outros Estados e não temos conseguido fazer isso aqui no alojamento, que é um espaço pequeno e isolado", diz o índio Guarapirá, da etnia pataxó. "Temos ganhado algum dinheiro contando a história dos índios em escolas particulares do Rio."

O índio Urutau, da etnia guajajara, membro do grupo que não aceitou o acordo, afirmou que o grupo continua tentando voltar à Aldeia Maracanã. Ele contou ainda que os índios têm, em mãos, um abaixo-assinado com 20 mil assinaturas e que será entregue ao Congresso na semana que vem. Segundo ele, está prevista uma manifestação de apoio à causa indígena no centro da capital fluminense.