Dados cruzados ajudam a encontrar corpos e resgatar histórias em Brumadinho
Passava do meio-dia de 25 de janeiro, e a funcionária administrativa da Vale Rosária Dias da Cunha, 27, trabalhava no armazém (espécie de almoxarifado de peças de reposição) da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). Às 12h27min23s, ela imprimiu um documento. Cinquenta e sete segundos depois, às 12h28min20s, a barragem B1 se rompeu e a onda de rejeito de minério a matou. A tragédia completa seis meses nesta semana.
Quando, em meados de março, já não era mais possível encontrar vítimas sobre a superfície da lama, informações precisas como essa, de uso de impressora (com identificação do funcionário pelo crachá), login em computadores, ligações feitas e e-mails enviados, se tornaram fundamentais. Era preciso saber mais sobre quem se procurava e seus últimos passos para estimar um possível deslocamento do corpo e delimitar a área de escavações. Vasculhar sem critério o terreno inteiro, equivalente a 400 campos de futebol, poderia levar em torno de cinco anos, calculam os Bombeiros.
Seis meses depois e com menos de 10% dos 7 milhões de metros cúbicos de lama da chamada zona quente remexidos, 92% das 270 vítimas foram encontradas e identificadas, entre elas, Rosária. Seu corpo foi localizado em 16 de abril, 3 quilômetros distante de onde ela foi atingida, preso a uma viga metálica do armazém. Na semana passada, os bombeiros acharam sua mochila com o documento de identidade dentro.
"Era mais do que números. A gente estava, de fato, buscando pessoas com suas histórias", diz a tenente Luíza Mateus Marçal, que ajudou a criar do zero a estratégia de inteligência da que já é considerada a maior operação de resgate da história do Brasil em duração. O trabalho, porém, continua.
Era mais do que números. A gente estava, de fato, buscando pessoas com suas histórias
tenente Luíza Mateus Marçal
Corpos e objetos "filtrados" por escavadeiras
Na sala de comando do posto operacional do Corpo de Bombeiros montado no local da tragédia, em meio a mapas gigantes afixados nas paredes e estatísticas pinceladas em quadros brancos, há um painel com nomes e rostos dos 22 desaparecidos e uma frase: "A motivação de estarmos aqui".
Uma imagem digitalizada desse painel, bem como um resumo do trabalho realizado pelas equipes anteriores, também é entregue a cada novo bombeiro que se apresenta para o serviço a casa semana. É com esse material e um aplicativo de georreferenciamento (especialmente criado para a operação) no celular que todos os dias cerca de 150 homens e mulheres vão a campo, em 24 frentes de trabalho, com ao menos dois cães e um drone, em um cenário hoje bem diferente do de seis meses atrás.
Onde antes era preciso rastejar e cavar manualmente, hoje se transita com veículos e máquinas de toda espécie, como os 15 caminhões de mineração fora-de-estrada, de 10 metros de altura e capacidade para 100 toneladas. Eles têm feito cerca de 200 viagens por dia levando o rejeito da zona quente, depois de ser verificado de duas a três vezes, até áreas de descarte, onde o material é separado por montes, cada um com uma placa indicando o setor das buscas de onde veio, e passa por pelo menos mais uma checagem.
Cada verificação, ou "tombo", como as equipes chamam, é feita por escavadeiras, que, de certa altura, vão derrubando devagar o rejeito no chão, de forma que três bombeiros, cada um de um ponto diferente, consigam ver caso algum objeto ou segmento de corpo deslize de cada "concha" ao ser esvaziada.
Quando algo é avistado, como foi o caso da mochila de Rosária no último dia 17, o bombeiro apita para que o operador da máquina pause a operação e o material seja fotografado, recolhido, lacrado (há lacre com cor diferente para cada item) e enviado para o perito que fica alocado na base e que, posteriormente, o encaminha para o IML (Instituto Médico-Legal) ou para a polícia - tudo precisa ser periciado, uma vez que foi retirado da cena de um crime, que é investigado.
Mato onde ficava a barragem
No que sobrou da barragem, cresce mato, que também se alastra pelos 10 km lineares e 32 km em circunferência devastados e até poderia mascarar a dimensão do estrago não fosse pelas marcas deixadas pela lama nos troncos das árvores que resistiram nas margens.
Do prédio administrativo, do restaurante e do armazém onde Rosária trabalhava, a menos de 1 km da barragem, não restaram sequer as fundações, que desapareceram em razão da violência da avalanche de alta densidade (cada metro cúbico de rejeito de minério pesa 2,6 toneladas), que atingiu a velocidade de 75 km/h.
Josiane Melo, engenheira civil da Vale, perdeu a irmã Eliane de Oliveira Melo, grávida de cinco meses, na tragédia. Hoje, ela diz que não reconhece o local devastado pela lama.
Vou lá e não reconheço o lugar. Tinha pés de frutas, orquídeas nas árvores. A área dos escritórios mais parecia uma pousadinha do que mineração. Não sobrou nada
Josiane Melo, engenheira civil da Vale
O corpo de Eliane foi localizado em 3 de abril depois que estudos do setor de inteligência permitiram entender a dinâmica do deslocamento da lama, ou seja, de que forma ela seguiu por sobre edificações, veículos e pilhas de rejeito já existentes na mina, e, com isso, estreitar a área de busca.
O corpo foi encontrado no mesmo local que outros três colegas, que estavam com ela numa caminhonete Duster quando foram atingidos. O cruzamento de dados - entrevistas com familiares e funcionários da Reframax, para quem eles trabalhavam, e imagens de câmeras de segurança - indicou a localização inicial deles.
Explicações às famílias e apoio
Assim como Josiane, outros familiares costumam visitar a zona quente, a 13 quilômetros do centro da cidade por estrada. São acompanhados de algum dos comandantes da operação, que explicam o andamento dos trabalhos, da mesma forma que acontece desde março em reuniões semanais, às 10 horas de toda quarta-feira, em uma base de apoio da Vale. Os encontros têm aproximado famílias e bombeiros.
Por parte das famílias, alento. Para os militares, razão para manter o foco. No Dia das Mães, antes de as equipes irem a campo, às 7 horas, houve homenagem para duas mães bombeiras que estavam de serviço, três mães de bombeiros, que apareceram de surpresa, e três mães de vítimas desaparecidas.
"Foi para que os bombeiros vissem o que essas mães estão passando e se motivassem. Cada equipe tem que estar muito atenta porque, em um momento de distração, pode deixar passar alguma coisa que nunca mais vai ser recuperada", diz o tenente-coronel Anderson Passos, que durante cinco meses revezou-se no comando da operação com o também tenente-coronel Eduardo Ângelo.
"Imagina uma mãe na sua frente pedindo para encontrar o filho dela? Não tem como não dar tudo de si em campo", afirma a capitã Thaise Rocha, que coordenou a inteligência operacional até o final de abril. Dois meses antes de deixar o posto, ela passou por uma experiência particular.
Ao dar uma olhada nas cartas escritas pelas crianças de Brumadinho em agradecimento pelo trabalho dos bombeiros, encontrou a de uma mãe.
Eu sei que, se dependesse de vocês, o meu filho Francis Erick já teria sido encontrado. Obrigada pelo empenho!
Carta da mãe de um dos mortos em Brumadinho para os bombeiros
A capitã se emocionou. Coincidentemente, naquele dia, o IML havia identificado o filho daquela mulher.
"Tentamos de tudo"
No decorrer da operação, vários testes foram feitos na tentativa de agilizar os trabalhos: abertura de valetas para escoar água que, no fim, tomavam muito tempo dos bombeiros; peneiras hidráulicas que não se mostraram eficientes; buscas noturnas, trator flutuante.
Até um sensitivo, que se propôs a ajudar e foi indicado por uma familiar, percorreu a zona quente - onde qualquer visitante, aliás, só tem acesso mediante autorização do comando e escoltado por um batedor da Vale. "Mas a ajuda foi inconclusiva", conta o tenente-coronel Passos.
Do soldado ao coronel, do diretor da Vale até o funcionário mais simples da empresa, mas que podia contribuir com a vivência dele, todo mundo foi colocado para dar opinião
tenente-coronel Anderson Passos
O cruzamento de dados, dentro do trabalho de inteligência, foi a estratégia que mais deu certo. Os Bombeiros aprimoraram ações que lá no começo dos anos 2000 já eram utilizadas, embora de forma incipiente, como no caso do rompimento da barragem da mineradora Rio Verde (que agora pertence à Vale), no distrito de Macacos, em Nova Lima (MG), que deixou cinco mortos. Também trocaram experiências com a equipe de Israel, que têm expertise com ocorrências envolvendo estruturas colapsadas.
Riscos à saúde monitorados
Os primeiros exames realizados pelos bombeiros indicam que os metais a que eles são expostos na operação têm sido, gradativamente, eliminados pelo organismo. Uma grande leva de resultados é aguardada para o mês que vem. Segundo a assessora de saúde do Corpo de Bombeiros de Minas, coronel Andréia Batista, ainda não é possível saber por mais quanto tempo os resgatistas terão que se submeter aos exames.
Segundo ela, um grupo de toxicologia foi contratado pelo Ministério da Saúde para acompanhar os trabalhos e deve, ao final, produzir uma nota técnica a respeito do protocolo utilizado, que delimitou em 21 dias o período máximo de exposição direta.
Tal protocolo, segundo a coronel, foi compartilhado com a Vale. A empresa disse ao UOL que seus funcionários, próprios e terceirizados, que atuam na operação não têm sido submetidos ao mesmo protocolo porque "realizam tarefas diferentes das dos bombeiros, sem contato direto com o rejeito", mas que têm sido acompanhados pela equipe de medicina ocupacional da mineradora.
Os cães, que ajudaram na localização de 80% dos corpos e fragmentos encontrados sob a lama, também estão expelindo aos poucos o metal absorvido. Mas a maioria dos animais que passou pela operação - 62 ao todo - está sendo preservada. "Embora alguns metais estejam diminuindo, não podemos retornar com eles para operação, senão esses níveis vão se elevar novamente", diz o comandante do Pelotão de Busca e Salvamento com Cães de MG, tenente Lucas Silva Costa.
Troféu, churrasco, açaí e chá de fralda
Em seis meses, muita coisa aconteceu no entorno da zona quente. Das mais absurdas, como a prisão de quase 15 pessoas que comprometiam o andamento da operação - de falso policial a pilotos de drones que punham em risco o tráfego de helicópteros -, às mais prazerosas e gratificantes.
Teve bombeiro sendo presenteado com troféu por um operador de máquinas da Vale, Valdinei José Cardoso, 42, mais conhecido como Ney Maria Branca, admirado com a "sinceridade do olhar" dos que foram seus colegas por alguns dias. Apareceu em um dia de folga e pediu para prestar a homenagem durante a apresentação da tropa pela manhã.
Foram mais de 100 militares batendo continência pra mim. Fiquei arrepiado
operador de máquinas Valdinei José Cardoso
E ainda tem churrasco com açaí toda terça-feira à noite, oferecido por um missionário evangélico, o americano Paul Perry, e sua esposa chinesa, Ashley Tan, que correm atrás de patrocínio para comprar os 50 kg de carne e 20 potes de 10 litros cada um que são consumidos na ocasião.
"É um trabalho muito duro, que exige demais dos bombeiros. É um agrado mais que merecido", diz o major Alisson Malta, um dos bombeiros à frente das equipes da operação e que ganhou um chá de fraldas de familiares desaparecidos dois dias antes de nascer seu terceiro filho, Matheus, no dia 5.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.