Brumadinho: identificações usam software que "monta corpos" e aval do MP
Eram 10h50 de uma sexta-feira, e uma mensagem do superintendente de Perícia Técnica e Científica de Minas Gerais, Thales Bittencourt, chegava no grupo de WhatsApp. Alertava a equipe do IML (Instituto Médico-Legal) de Belo Horizonte responsável por receber as vítimas de Brumadinho que os bombeiros haviam acabado de localizar um corpo em meio ao rejeito de minério vazado da barragem B1 da Vale em 25 de janeiro. Estava quase intacto, e a possibilidade de se fazer a identificação pela arcada dentária era grande.
Uma fotografia tirada no local das buscas foi enviada em seguida e fez a perito odontolegista Luciene Menrique Corradi, 51, ter esperanças. Havia muitos dentes. Ela, então, buscou nos arquivos toda a documentação AM (ante mortem, de antes da morte) das vítimas ainda desaparecidas, fornecida pelas famílias dias depois da tragédia, e passou a estudá-las, tentando traçar uma primeira comparação entre as radiografias que tinha em mãos e o desenho da arcada que aparecia na foto.
Às 18h30, estava com tudo estudado. Sabia pelo nome quem entre as vítimas tinha prótese, um implante ao lado do outro, dentes faltando, obturações. Seu expediente terminaria dali a meia hora, mas ela não iria embora tão cedo.
Passava das 20h30 quando o corpo chegou. Enquanto ele era preparado por seus colegas para passar por tomadas no tomógrafo, após uma primeira limpeza para a retirada de rejeito incrustado, Luciene se posicionou em um canto da sala da necropsia, a uma distância que lhe permitia olhar com atenção a arcada, e balançou a cabeça em sinal de positivo. Já sabia de quem era.
Ela e os colegas se debruçaram nas horas seguintes no trabalho técnico de identificação e na preparação do laudo, que levou cerca de quatro horas para ser elaborado. Deixaram o IML às 3h30 da madrugada. A família foi avisada pela manhã.
Para o time da antropologia forense de BH, que foi colocado à disposição do caso Brumadinho, a chegada de casos como este, com arcada dentária ou parte dela e saponificados (mais preservados devido ao ambiente úmido e baixos pH e índice de oxigênio), é, dentro do possível, comemorada, porque permite resolução do caso em poucas horas, podendo-se dar uma resposta mais rápida às famílias. Infelizmente, porém, tem sido a exceção depois de seis meses.
Principais dificuldades
A maior parte do material que chega hoje ao IML está segmentada, extremamente decomposta e contaminada pelos metais presentes na lama em que os corpos estão envoltos. Em razão disso, a única alternativa que seria possível, que é da identificação por comparação de DNA, também fica comprometida.
A perito criminal e chefe do laboratório de DNA forense da Polícia Civil de MG, Valéria Rosalina Dias, explica que, um dos problemas é que o minério interfere no pH dos reagentes utilizados para a extração do DNA. "Muda o pH, muda a solução em que se coloca o material para que o DNA seja exposto. Quando isso acontece, o material tem que ser 'lavado' e o processo, repetido."
Valéria afirma que houve um caso em que foram feitas 20 tentativas de extração sem sucesso. Em outra ocasião, foram necessárias tantas tentativas que, apesar de o resultado ter sido positivo, com a identificação da vítima, já não restava mais material para entregar à família.
Outro problema é, que muitas vezes, o que se tem disponível para realizar os exames são ossos, e extrair DNA de célula óssea é mais difícil do que, por exemplo, extrair de pedaços de músculo e cartilagem, que têm se tornado raros.
A equipe do laboratório de DNA do Instituto de Criminalística voltou até mesmo a usar fenol na extração, que é um reagente bastante eficaz em amostras degradadas como as de Brumadinho, mas que há anos vem deixando de ser usado por suas características tóxicas e irritantes e potencial cancerígeno, já que é capaz de destruir as células.
"O exame não é algo rígido, não se põe algo numa máquina e o resultado fica pronto. A análise forense é, de certa maneira, artesanal", explica a chefe do laboratório. Dois aparelhos importados, porém, utilizados em pesquisa (não comuns na atividade forense), foram adquiridos pela Vale e deverão entrar em funcionamento em breve no instituto, dando celeridade ao processo.
Um deles, chamado braço robótico, está em fase de implantação e permitirá até 96 extrações simultâneas. O outro, que ainda não chegou, é um sequenciador que atuará diretamente nos casos mais difíceis de extração.
Software e troca de experiências
A Polícia Civil de Minas criou um software que faz o controle dos segmentos encontrados, facilitando saber se um determinado fragmento é de um indivíduo não identificado ou não e quantas partes ainda faltam para compor o corpo completo. O programa, apresentado recentemente no encontro anual da Interpol sobre DVI (investigações sobre vítimas de desastre), em Singapura, foi desenvolvido para Brumadinho, mas poderá servir a partir de agora para qualquer situação de DVI, que é a sigla para identificação de vítima de desastre.
Os peritos de BH também têm recorrido a especialistas em desastres, como o médico-legista e diretor do Instituto de Pesquisa de DNA Forense da Polícia Civil do DF, Samuel Ferreira, que atuou na tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, que deixou 918 mortos em 2011, e é coordenador científico da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e do Grupo de Trabalho Perus (GTP). A convite, ele esteve em Brumadinho com mais três colegas da PC nas três primeiras semanas após a tragédia e trabalhou junto com peritos e bombeiros.
"Existem protocolos quando desastres acontecem. Em caso de corpos fragmentados, há formas específicas de resgate e de transporte, bem como devem ser providenciados 'fluxos' de trabalho. Ou seja, se montam 'estações', para fotografar, lavar os corpos, coletar digitais, necropsia, antropologia, odontologia e coleta de amostras para exames de DNA. Não é nada parecido com a rotina a que qualquer IML esteja acostumado", diz ele.
O especialista continua a se comunicar periodicamente com as equipes do IML e o Instituto de Criminalística.
Autorização do MP para agilizar identificações
Até anteontem, o IML havia contabilizado o recebimento de 699 casos, entre corpos e segmentos de corpos. Uma parte desse total foi suficiente para identificar 248 vítimas (as que constam da atual lista de mortos da tragédia) e 92 não pertenciam a pessoas, e sim a animais - muitas vezes, não é possível aos bombeiros identificar se o material localizado em meio ao rejeito de minério é humano ou não.
Outros 121 casos aguardavam conclusão de exame de DNA, sendo que um terço deles já possuíam resultados para o primeiro dos dois testes que precisam ser feitos, seguindo protocolo internacional para catástrofes. Resultados preliminares, porém, que não apontam para novas vítimas, e sim, para pessoas que já foram identificadas e sepultadas, mesmo que de alguma parte do corpo. É a chamada reidentificação.
Ao observar que a identificação das vítimas exigiria testes de DNA com frequência - pelo tamanho da tragédia - e agilidade - por causa do sofrimento, a equipe do IML apresentou um pedido ao MP (Ministério Público) ainda nas primeiras semanas de buscas: que fragmentos de corpos identificados pudessem ser contabilizados como óbitos.
A morte, no geral, não pode ser declarada a partir apenas de um membro desgarrado do corpo, porque subentende-se que o segmento pode pertencer a alguém que ainda esteja vivo. No caso de Brumadinho, o MP entendeu que, sim, poderia ser feita uma exceção, porque não se trata de fragmentos encontrados aleatoriamente, mas retirados de dentro de uma área de buscas onde ocorreu uma tragédia.
"Dada a magnitude da tragédia e impossibilidade de sobrevivência pelo trauma sofrido, consultamos o MP se podíamos considerar um segmento, mesmo que pequeno, como representativo do corpo para fins de identificação de uma vítima fatal", explica o médico-legista Ricardo Moreira Araújo, chefe da seção de tanatologia forense (que se debruça sobre as causas e circunstâncias da morte) do IML de Belo Horizonte.
A partir daí, também foi preciso formular um documento para informar as famílias sobre essa peculiaridade da situação - em caso, claro, de não ter sido encontrado o corpo completo. Encontrado e identificado um fragmento de corpo, as famílias têm três alternativas:
- retirar o segmento do corpo do ente para sepultamento e não ser avisado se outras partes vierem a ser identificadas
- retirar o segmento do corpo do ente para sepultamento e ser avisado em caso de outras partes serem identificadas
- não retirar o segmento e aguardar por mais fragmentos para, só então, realizar o enterro
Algumas famílias que optaram pelo enterro e por serem avisadas de novas localizações esperam que, ao final das buscas, um memorial seja erguido nas proximidades da Capela de Nossa Senhora das Dores, no Córrego do Feijão, para depositar os restos mortais que, por ora, seguem acondicionados no IML.
Identificação com ajuda de fotos no Facebook
Dos seis meses do trabalho de identificação, muita coisa vai ficar na lembrança de legistas e peritos, tanto entre os que são lotados em Belo Horizonte, como entre os profissionais que vieram de vários estados para ajudar. Para Luciene, há 27 anos da área, fica difícil definir qual a pior imagem, mas a dos primeiros dias, em que corpos chegavam em grande quantidade ao IML, como que em um cenário de guerra, carregados por soldados do Exército, certamente vai ficar latente para o resto da vida.
Para a médica legista radiologista Adriana Lima, vai ficar na memória o registro de corpos uniformizados, de pessoas que sequer tiveram tempo para ensaiar uma fuga. Mais especificamente, o caso de um soldador, que chegou com o macacão, as luvas grossas e o protetor de rosto.
Em momentos em que ainda eram encontrados corpos completos e em bom estado de conservação, muitas vezes as equipes do IML se concentravam em detalhes, como a linha do sorriso da vítima. Como explica Adriana, o trabalho forense hoje em dia se vale de tecnologias como as próprias redes sociais para elucidar casos. É o que eles chamam de busca ativa. E com Brumadinho não foi diferente.
Em uma das ocasiões, enquanto era procurada uma imagem da vítima no perfil de um parente no Facebook, para tentar fazer comparações com documentos de imagem de que eles já dispunham, a equipe se deparou com uma foto em que a família, abraçada, usava camisetas com o rosto da pessoa estampado e uma mensagem de esperança. Ninguém conseguiu segurar o choro, conta Adriana.
A médica legista participou, em março, da primeira reunião com familiares de desaparecidos, promovida pelas autoridades envolvidas nas buscas e identificação de vítimas. Diz que fez questão de almoçar com alguns deles e dar um abraço em cada um.
"Eles chegam para a gente e pedem 'por favor, não desiste, me ajuda a encontrar meu filho'", diz ela. "Por isso que quando a gente fica até tarde e sai exausto daqui, sai com a sensação de dever cumprido. E a gente diz para eles: aqui, todo mundo tem muita importância. A gente não vai desistir."
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