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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Sob pressão, conflitos explodem e fazem Amazônia viver da tensão à barbárie

Suspeito de ser pirata do rio foi morto na quarta-feira em Japurá e teve o corpo queimado - Reprodução
Suspeito de ser pirata do rio foi morto na quarta-feira em Japurá e teve o corpo queimado Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

09/07/2022 04h00

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Mortes de Dom Phillips e Bruno Araújo em Atalaia do Norte (AM); estátua de Chico Mendes derrubada em Rio Branco; ameaças e reviravolta em assentamento em Anapu (PA); suposto pirata assassinado e queimado em Japurá (AM). A Amazônia vive um momento de explosão de conflitos, que levaram a cenas de barbárie nos últimos dias.

Segundo especialistas ouvidos pela coluna, os conflitos na região não são novos, mas estão sendo impulsionados pela falta de solução para a questão fundiária, somada à redução de fiscalização nos últimos anos.

Com isso, terras públicas ou indígenas sofrem com invasores, que passam a desmatar para ter a posse do local —criando gado ou retirando madeira, por exemplo. No meio deles, povos tradicionais são pressionados e vivem momentos de apreensão em uma luta que resultou, nos últimos dez anos, em pelo menos 313 assassinatos por conflitos de terra ou água.

Na quinta-feira (7), um novo crime chamou a atenção pela brutalidade: um homem apontado por ribeirinhos locais como pirata do rio foi retirado de um barco, espancado e morto. O corpo dele foi queimado na frente de dezenas de pessoas, que filmavam e comemoravam as chamas.

Um áudio atribuído ao filho da vítima, porém, alega que o pai foi morto por engano e que ele não era pirata. A polícia do Amazonas mandou reforço e investiga o caso.

Estátua fica no centro de Rio Branco e foi derrubada por vândalos - Repdrodução/Twitter Paulo Pimenta - Repdrodução/Twitter Paulo Pimenta
Estátua fica no centro de Rio Branco e foi derrubada por vândalos
Imagem: Repdrodução/Twitter Paulo Pimenta

No dia 1º, a estátua de Chico Mendes foi derrubada em um ato de vandalismo em Rio Branco, entendido por movimentos rurais como afronta e ameaça aos povos da floresta.

Antes disso, na semana passada, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) instituiu e, após pressão, revogou a criação de um assentamento para 73 famílias produtoras agroflorestais em Anapu, gerando ainda mais tensão na área onde há 17 anos foi morta a missionária Dorothy Stang.

A escalada pode ser explicada no avanço do desmatamento na região e que ocorre, em regra, nas áreas invadidas ilegalmente).

Somente no primeiro semestre, o bioma perdeu 3.988 km², alta pelo quarto ano consecutivo e maior número desde o início da série histórica, iniciada em 2016. As queimadas cresceram 17% de janeiro a junho.

Os dados mostram também que houve uma explosão de focos de incêndio em junho, com 2.562 registros —o maior dado desde 2007. O mês de junho também teve a pior marca da série histórica tanto de desmatamento como de queimadas (foram devastados 1.120 km² no mês na Amazônia).

Vale do Javari, um retrato

Um dos exemplos do desmonte foi a última operação de Bruno Araújo à frente da coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio). A ação destruiu 60 balsas de garimpo, enfureceu criminosos e acabou resultando na demissão dele. Depois disso, criminosos passaram a invadir ainda mais a área, com caça e pesca ilegal.

Antes da morte de Dom e Bruno, o MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas e defensorias públicas estadual e da União já haviam alertado sobre a escalada da tensão e cobrado a retomada pela Funai das bases de proteção etnoambiental no local. Entretanto, nada foi feito.

"A política indígena para isolados nos fez ter um retrocesso à década de 1970. São ideais integracionistas, coloniais", diz Leonardo Lenin Santos, indigenista do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato).

Nessa questão, eles desmancharam e desqualificaram políticas públicas, inclusive negando resultados de feito campo pelos melhores sertanistas que a Funai ainda mantém no quadro."
Leonardo Lenin, do OPI

2019: Operação desmantela garimpo e destrói 60 balsas no Amazonas - Funai - Funai
2019: Operação desmantela garimpo e destrói 60 balsas no Amazonas
Imagem: Funai

Para Darlene Braga, coordenadora Regional Acre e Amazônia da CPT (Comissão Pastoral da Terra), ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o aumento de conflitos e da violência já pode ser considerado a marca do atual governo. Não à toa, segundo a entidade, o número de conflitos gerados no campo na era Bolsonaro supera a soma de todos os outros governos desde 1985.

Para ela, as sucessivas falas do presidente incriminando índios e defendendo a exploração de terras sem controle só agravam a situação. "As declarações do presidente avalizam os conflitos", afirma.

"São mortes, casos de violência e descaso que precisam de atuação efetiva; porém, o governo não dá respostas para uma efetivação à democratização ao acesso à terra", diz.

Darlene afirma que a situação piorou após a pandemia, quando invasores se aproveitaram da condição de isolamento e redução de fiscalização para avançar com despejos ilegais e desmatamentos.

Em 2021, segundo o relatório Conflitos do Campo, da CPT, a Amazônia registrou 52% das disputas e 62% do número de famílias envolvidas em conflitos agrários. Ainda de acordo com o documento, 97% das áreas de conflitos do ano passado localizam-se na Amazônia, com um total de 680 mil km² —equivalente à soma dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Nos últimos dez anos, os conflitos no campo na região da Amazônia no campo resultaram em 77% do total de mortes envolvendo disputas por terra ou água em zonas rurais do país entre 2012 e 2021.

Parece que vivemos em um Estado sem lei, em que eles podem tudo: derrubar, queimar, expropriar as pessoas, e nada acontece. A impunidade é preocupante, pois eles têm a certeza de que nada acontecerá, mesmo com os crimes bárbaros."
Darlene Braga, da CPT

Foto tirada em 15 de agosto de 2020 mostra queimada ilegal na Amazônia, em Novo Progresso (PA) - Carl de Souza/AFP - Carl de Souza/AFP
Foto tirada em 15 de agosto de 2020 mostra queimada ilegal na Amazônia, em Novo Progresso (PA)
Imagem: Carl de Souza/AFP

Redução do estado

Ao longo dos últimos meses, muitas reportagens têm mostrado como o aparato e ações do governo federal diminuíram na Amazônia.

Na causa indígena, por exemplo, o governo parou a demarcação de terras e retirou funcionários das bases de proteção aos índios isolados. O corpo de funcionários efetivos da Funai na Amazônia caiu pela metade em nove anos.

Na Amazônia, com a fragilização da fiscalização, facções criminosas como PCC e CV cresceram e se coligaram com outros tipos de delitos.

Segundo o professor Aiala Colares, da UEPA (Universidade do Estado do Pará) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os conflitos na região sempre existiram, com assassinatos de lideranças indígenas, quilombolas e de movimentos camponeses.

Em muitos casos, diz, o estado foi conivente com a onda de violência que vem se alastrando na região. "Parece-me que os assassinatos de Bruno e Dom trouxeram sentido para a luta dos povos da floresta", afirma.

"A tensão sempre existiu e seguiu [nesse governo]. Mas antes era algo mais tímido, mais escondido. Agora o ódio está muito visível", diz o cacique Almir Narayamoga, do povo Suruí, em Rondônia.

Quando as coisas se tornam mais visíveis, é muito mais perigoso que quando a coisa é tímida. Por isso acho que está um pouco pior agora."
Almir Narayamoga, cacique do povo Suruí

Vista aérea mostra uma área desmatada da floresta tropical da Amazônia em Lábrea, Amazonas - MAURO PIMENTEL / AFP - MAURO PIMENTEL / AFP
Vista aérea mostra uma área desmatada da floresta tropical da Amazônia em Lábrea, Amazonas
Imagem: MAURO PIMENTEL / AFP

Procurada pela coluna, a Funai não respondeu. Já o Incra afirma que tem executado ações para garantir a regularização e o desenvolvimento de famílias na Amazônia Legal.

"A execução da política de reforma agrária não se resume à obtenção de terras e à seleção de famílias", diz a nota.

"O Incra atuou na regularização das famílias e na inclusão produtiva, com a retomada da seleção de famílias, a supervisão ocupacional de lotes em assentamentos, a concessão de crédito e a titulação", informa.

De 2019 a 2022, diz o Incra, foram criados dez assentamentos, com área de total de 253.262 hectares e capacidade para 826 famílias. "Promoveu ainda a seleção e a homologação de 8.319 novos beneficiários em lotes nos assentamentos da região."

Destaca ainda, em relação à concessão de crédito, foram firmados 33.609 contratos com um valor total de R$ 304 milhões na região.

"Na ação de titulação na Amazônia Legal, de 2019 a 2022, o instituto expediu 194.454 documentos somente em assentamentos da reforma agrária. Em áreas públicas passíveis de regularização foram 16.041 documentos", aponta.

Sobre a violência, diz que ameaças à segurança devem ser reportadas às forças estaduais de segurança pública e que, sempre que tem informação sobre alguma tensão, aciona os órgãos competentes.