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Sob pressão, conflitos explodem e fazem Amazônia viver da tensão à barbárie
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Mortes de Dom Phillips e Bruno Araújo em Atalaia do Norte (AM); estátua de Chico Mendes derrubada em Rio Branco; ameaças e reviravolta em assentamento em Anapu (PA); suposto pirata assassinado e queimado em Japurá (AM). A Amazônia vive um momento de explosão de conflitos, que levaram a cenas de barbárie nos últimos dias.
Segundo especialistas ouvidos pela coluna, os conflitos na região não são novos, mas estão sendo impulsionados pela falta de solução para a questão fundiária, somada à redução de fiscalização nos últimos anos.
Com isso, terras públicas ou indígenas sofrem com invasores, que passam a desmatar para ter a posse do local —criando gado ou retirando madeira, por exemplo. No meio deles, povos tradicionais são pressionados e vivem momentos de apreensão em uma luta que resultou, nos últimos dez anos, em pelo menos 313 assassinatos por conflitos de terra ou água.
Na quinta-feira (7), um novo crime chamou a atenção pela brutalidade: um homem apontado por ribeirinhos locais como pirata do rio foi retirado de um barco, espancado e morto. O corpo dele foi queimado na frente de dezenas de pessoas, que filmavam e comemoravam as chamas.
Um áudio atribuído ao filho da vítima, porém, alega que o pai foi morto por engano e que ele não era pirata. A polícia do Amazonas mandou reforço e investiga o caso.
No dia 1º, a estátua de Chico Mendes foi derrubada em um ato de vandalismo em Rio Branco, entendido por movimentos rurais como afronta e ameaça aos povos da floresta.
Antes disso, na semana passada, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) instituiu e, após pressão, revogou a criação de um assentamento para 73 famílias produtoras agroflorestais em Anapu, gerando ainda mais tensão na área onde há 17 anos foi morta a missionária Dorothy Stang.
A escalada pode ser explicada no avanço do desmatamento na região e que ocorre, em regra, nas áreas invadidas ilegalmente).
Somente no primeiro semestre, o bioma perdeu 3.988 km², alta pelo quarto ano consecutivo e maior número desde o início da série histórica, iniciada em 2016. As queimadas cresceram 17% de janeiro a junho.
Os dados mostram também que houve uma explosão de focos de incêndio em junho, com 2.562 registros —o maior dado desde 2007. O mês de junho também teve a pior marca da série histórica tanto de desmatamento como de queimadas (foram devastados 1.120 km² no mês na Amazônia).
Vale do Javari, um retrato
Um dos exemplos do desmonte foi a última operação de Bruno Araújo à frente da coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio). A ação destruiu 60 balsas de garimpo, enfureceu criminosos e acabou resultando na demissão dele. Depois disso, criminosos passaram a invadir ainda mais a área, com caça e pesca ilegal.
Antes da morte de Dom e Bruno, o MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas e defensorias públicas estadual e da União já haviam alertado sobre a escalada da tensão e cobrado a retomada pela Funai das bases de proteção etnoambiental no local. Entretanto, nada foi feito.
"A política indígena para isolados nos fez ter um retrocesso à década de 1970. São ideais integracionistas, coloniais", diz Leonardo Lenin Santos, indigenista do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato).
Nessa questão, eles desmancharam e desqualificaram políticas públicas, inclusive negando resultados de feito campo pelos melhores sertanistas que a Funai ainda mantém no quadro."
Leonardo Lenin, do OPI
Para Darlene Braga, coordenadora Regional Acre e Amazônia da CPT (Comissão Pastoral da Terra), ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o aumento de conflitos e da violência já pode ser considerado a marca do atual governo. Não à toa, segundo a entidade, o número de conflitos gerados no campo na era Bolsonaro supera a soma de todos os outros governos desde 1985.
Para ela, as sucessivas falas do presidente incriminando índios e defendendo a exploração de terras sem controle só agravam a situação. "As declarações do presidente avalizam os conflitos", afirma.
"São mortes, casos de violência e descaso que precisam de atuação efetiva; porém, o governo não dá respostas para uma efetivação à democratização ao acesso à terra", diz.
Darlene afirma que a situação piorou após a pandemia, quando invasores se aproveitaram da condição de isolamento e redução de fiscalização para avançar com despejos ilegais e desmatamentos.
Em 2021, segundo o relatório Conflitos do Campo, da CPT, a Amazônia registrou 52% das disputas e 62% do número de famílias envolvidas em conflitos agrários. Ainda de acordo com o documento, 97% das áreas de conflitos do ano passado localizam-se na Amazônia, com um total de 680 mil km² —equivalente à soma dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
Nos últimos dez anos, os conflitos no campo na região da Amazônia no campo resultaram em 77% do total de mortes envolvendo disputas por terra ou água em zonas rurais do país entre 2012 e 2021.
Parece que vivemos em um Estado sem lei, em que eles podem tudo: derrubar, queimar, expropriar as pessoas, e nada acontece. A impunidade é preocupante, pois eles têm a certeza de que nada acontecerá, mesmo com os crimes bárbaros."
Darlene Braga, da CPT
Redução do estado
Ao longo dos últimos meses, muitas reportagens têm mostrado como o aparato e ações do governo federal diminuíram na Amazônia.
Na causa indígena, por exemplo, o governo parou a demarcação de terras e retirou funcionários das bases de proteção aos índios isolados. O corpo de funcionários efetivos da Funai na Amazônia caiu pela metade em nove anos.
Na Amazônia, com a fragilização da fiscalização, facções criminosas como PCC e CV cresceram e se coligaram com outros tipos de delitos.
Segundo o professor Aiala Colares, da UEPA (Universidade do Estado do Pará) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os conflitos na região sempre existiram, com assassinatos de lideranças indígenas, quilombolas e de movimentos camponeses.
Em muitos casos, diz, o estado foi conivente com a onda de violência que vem se alastrando na região. "Parece-me que os assassinatos de Bruno e Dom trouxeram sentido para a luta dos povos da floresta", afirma.
"A tensão sempre existiu e seguiu [nesse governo]. Mas antes era algo mais tímido, mais escondido. Agora o ódio está muito visível", diz o cacique Almir Narayamoga, do povo Suruí, em Rondônia.
Quando as coisas se tornam mais visíveis, é muito mais perigoso que quando a coisa é tímida. Por isso acho que está um pouco pior agora."
Almir Narayamoga, cacique do povo Suruí
Procurada pela coluna, a Funai não respondeu. Já o Incra afirma que tem executado ações para garantir a regularização e o desenvolvimento de famílias na Amazônia Legal.
"A execução da política de reforma agrária não se resume à obtenção de terras e à seleção de famílias", diz a nota.
"O Incra atuou na regularização das famílias e na inclusão produtiva, com a retomada da seleção de famílias, a supervisão ocupacional de lotes em assentamentos, a concessão de crédito e a titulação", informa.
De 2019 a 2022, diz o Incra, foram criados dez assentamentos, com área de total de 253.262 hectares e capacidade para 826 famílias. "Promoveu ainda a seleção e a homologação de 8.319 novos beneficiários em lotes nos assentamentos da região."
Destaca ainda, em relação à concessão de crédito, foram firmados 33.609 contratos com um valor total de R$ 304 milhões na região.
"Na ação de titulação na Amazônia Legal, de 2019 a 2022, o instituto expediu 194.454 documentos somente em assentamentos da reforma agrária. Em áreas públicas passíveis de regularização foram 16.041 documentos", aponta.
Sobre a violência, diz que ameaças à segurança devem ser reportadas às forças estaduais de segurança pública e que, sempre que tem informação sobre alguma tensão, aciona os órgãos competentes.
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