"Acabei sequelado pelo Exército, pelo qual torcia", diz baleado em ocupação militar na Maré
Adriano Bezerra, 36, era o motorista do carro no qual Vitor Santiago, 32, e outras três pessoas estavam quando militares atiraram contra o veículo no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Vitor perdeu uma perna e ficou paraplégico, e Adriano levou um tiro no braço direito.
O caso aconteceu em fevereiro de 2015 durante a ocupação do Complexo da Maré, conjunto de favelas com 130 mil habitantes, pelas Forças Armadas.
Entre 5 de abril de 2014 e 30 de junho de 2015, cerca de 20 mil militares se revezaram na chamada Operação São Francisco. Dividida em sete fases, ela teve como objetivo principal fazer a manutenção da ordem pública e permitir a implantação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras) na área, o que não aconteceu.
À época da chegada dos militares na Maré, Adriano e Vitor acreditavam que a ocupação seria positiva se conseguisse alterar o quadro de ausência do Estado na região.
“A minha opinião na época foi bem positiva”, relembra Vitor. “Mas acabei sendo sequelado pelo Exército, pelo qual eu torcia”, afirma ele, hoje aposentado por invalidez.
Adriano também viu com bons olhos a ocupação de 2014-2015, mas agora cobra melhor preparo das forças de segurança. “Eles têm que ter mais preparo para poder diferenciar trabalhador e bandido.”
O Gabinete de Intervenção Federal descarta ocupações prolongadas nos moldes da então realizada no Complexo da Maré --a ocupação, que custou R$ 560 milhões aos cofres públicos, registrou sete mortes, incluindo a do cabo Michel Augusto.
Três anos depois, a inédita intervenção federal na segurança do Rio é vista por Vitor e Adriano com um misto de receio e esperança.
“Essa é uma atitude que tinha que ser tomada”, defende Adriano, que observa que o trabalhador está pagando um preço muito alto pela insegurança, em especial as crianças, que na Maré perderam 17% das aulas devido a tiroteios, segundo um boletim da ONG Redes da Maré.
Já para Vitor o temor é que os militares comecem bem e terminem usando força bruta. “Agora eles sabem como funciona aqui e, se antes já entravam em casa sem mandado e viam celular sem autorização, imagina agora?"
"Um PM confirmou que éramos trabalhadores"
Nascido e criado na comunidade Salsa e Merengue, na Maré, Vitor conta que, à época, sua maior preocupação era procurar emprego e aproveitar o curso de segurança de trabalho que fazia. “Na época, minha filha tinha dois anos. Tudo que eu queria era chegar em casa para vê-la.”
Após assistir a um jogo do Flamengo em 12 de fevereiro de 2015, Vitor e quatro amigos voltavam de carro para a Maré quando foram abordados e revistados por soldados em uma das entradas da comunidade.
Pouco mais de 15 minutos depois, quando Vitor se preparava para descer do carro de Adriano, outro grupo de militares efetuou diversos disparos de fuzil contra o automóvel. O motorista foi atingido no braço direito, pouco acima do cotovelo, enquanto Vitor foi baleado nas pernas e no tórax --os tiros o deixaram paraplégico e acabariam por lhe custar a perna esquerda posteriormente.
Segundo o Exército, o motorista não obedeceu a pedido de parada do veículo.
Vitor e Adriano negam a versão. “A gente tem que saber andar na comunidade. Todo mundo sabia que não podia andar rápido, com janelas fechadas e que tinha que parar caso pedissem”, recorda Adriano.
As marcas daquele dia sobrevivem em ambos, seja na cicatriz de Adriano ou nas sequelas de Vitor, que ficou uma semana em coma.
Um tiro de fuzil calibre 762 rasgou músculos do motorista, mas não atingiu nenhum osso nem lhe deixou desacordado. “A dor aparece quando preciso dirigir meu caminhão ou entregar coco”, diz Adriano, que é fornecedor do produto a estabelecimentos da zona sul carioca.
Para Adriano, ser tratado como bandido foi a pior das ofensas. Segundo ele, após feitos os disparos e com o carro parado, os militares tiraram todos às pressas e trataram os feridos com truculência até que um dos passageiros --um sargento da Aeronáutica-- jogou sua carteira das Forças Armadas aos pés dos soldados. Só a partir daí, recordam eles, foram socorridos.
No Hospital Estadual Getúlio Vargas, enquanto Vitor parecia perder as forças, Adriano pedia para que ambos fossem atendidos. “O nosso amigo sargento da Aeronáutica teve que falar com um amigo policial da UPP ir ao hospital”, diz Adriano, pontuando que somente após o agente ter explicado que os dois eram trabalhadores que se iniciou o atendimento. “Se não fosse por isso, Vitor provavelmente teria morrido na maca.”
Prisão e sumiço do carro
Adriano diz ter sido levado sem um advogado para prestar depoimento no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) e depois na 21ª Delegacia de Polícia, em Bonsucesso, na zona norte. Lá, o delegado do plantão disse que ele teria de voltar ao hospital para elaboração de um laudo médico.
De volta ao Getúlio Vargas, Adriano relata que o médico lhe deu alta sem sequer vê-lo. “O oficial se prestou a ir procurá-lo e voltou depois me dizendo que o doutor não estava lá e que eu iria para casa”, diz ele. “Na volta para a delegacia que eu percebi que me enganaram, já que eles levaram uma alta que me permitiria ir para a cadeia.”
Às vésperas do Carnaval, Adriano foi preso no Complexo de Gericinó, em Bangu, na zona oeste carioca. Apesar de ter sido liberado um dia depois, sua impressão do local foi a pior possível. "Ali não é lugar de homem."
O UOL questionou o hospital sobre o procedimento de alta descrito por Adriano e, por meio de nota, a unidade de saúde confirmou que ele deu entrada na referida data com uma perfuração por arma de fogo no antebraço direito. "O paciente foi atendido, avaliado por quatro especialistas, passou por exame de raio X, foi medicado e recebeu alta hospitalar, com o membro imobilizado", diz o comunicado.
A reportagem também procurou o CML (Comando Militar do Leste) para que se manifestasse sobre o caso. A principal unidade do Exército no Rio respondeu que, segundo sua assessoria jurídica, contra Adriano, foi lavrado um auto de prisão em flagrante, que originou uma ação penal em trâmite na 4ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar.
"Informamos, ainda, que já foram realizadas diligências por determinação do Juízo a pedido do Ministério Público Militar, inclusive, laudos periciais, para a completa apuração dos fatos", disse o CML, por meio de nota.
O veículo que dirigia no dia em que foi baleado desapareceu. Segundo a advogada Fernanda Neiva, uma petição foi feita à Delegacia de Polícia Judiciária Militar para saber do paradeiro do carro, mas não houve resposta. Adriano arcou até 2017 com as prestações do carro. A reportagem questionou a Polícia Militar sobre o paradeiro do carro, mas ainda não obteve resposta.
Além disso, ele pagou do próprio bolso sessões de fisioterapia para reaprender a usar o braço direito. Pai de quatro filhos e herdeiro da empresa de seu pai, o que Adriano não podia era ficar parado. “Às vezes eu desanimava, mas lembrava o quão sortudo eu fui, enquanto meu amigo estava lá na cama do hospital sem uma perna (...) O que importa é que os grandes paguem pelo que fizeram.”
Mesmo antes de voltar a trabalhar, Adriano visitou Vitor no hospital. "Passar o que ele passou e ser a pessoa que ele é hoje é incrível. Ele faz tudo, sai, brinca e tudo mais mesmo com essa nova condição”, relata Adriano. Para Vitor, ele apenas persiste sendo a mesma pessoa. “Eu acordei no hospital sorrindo. Quando eu precisei amputar a perna eu respondi sorrindo ao médico. Sempre fui um cara positivo.”
Justiça
Na esfera judicial, há dois processos em andamento. A família de Vitor entrou com uma ação na área cível contra a União em busca de reparação. Até agora, ganhou apenas a antecipação de tutela, que permite que ele receba compensações materiais antes do final do julgamento --são sondas, fraldas, ataduras e outros instrumentos que ajudam Vitor com os cuidados básicos. O julgamento da reparação já está com o juiz Firly Nascimento, da 5ª Vara Federal do Rio de Janeiro, para a sentença.
Para Vitor, de pouco adiantaria processar o soldado que atirou. “Os vilões nessa história são os governos federal e estadual. O que importa é que os grandes paguem pelo que fizeram."
Já o caso de Adriano corre na Justiça Militar em uma ação que apura se houve desobediência por parte do motorista a uma ordem das Forças Armadas. “Enquanto eu tenho que ter fé que vai dar tudo certo, eles têm que ter consciência do erro deles.”
Atualmente, o plenário do STM (Superior Tribunal Militar) entende que cabe à Justiça Militar julgar civis que praticaram crimes contra militares em serviço de vigilância.
Enquanto Adriano acorda às 4h30 para fazer suas entregas, Vitor passa os dias em família e planeja novos empreendimentos após a sentença sair, em especial algo em que ele possa trabalhar em casa.
“Viver é se adaptar”, diz, exemplificando que, mesmo não conseguindo mais fazer certas brincadeiras com a filha, há sempre um jeitinho. “Não consigo mais levar ela para andar de bike, mas uso ela como supino para musculação. Ela adora.”
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