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Com rotina de tiroteios, "laboratório da intervenção" vê aumento de mortes

7.mar.2018 - Militar em operação na Vila Kennedy, no Rio - Mauro Pimentel/AFP
7.mar.2018 - Militar em operação na Vila Kennedy, no Rio Imagem: Mauro Pimentel/AFP

Marcela Lemos

Colaboração para o UOL, no Rio

14/02/2019 04h00

"Não tem hora para tiro aqui. Qualquer hora é hora. Qualquer dia é dia." "No último mês, quantas pessoas mortas você viu no seu bairro? Eu vi cinco. (...) A sensação é de comunidade sitiada." "Não acabaram sequer com as bocas de fumo."

Depoimentos de moradores da Vila Kennedy, favela da zona oeste do Rio de Janeiro considerada o "laboratório da intervenção" pela equipe de interventores que comandou a segurança pública do estado no ano passado, revelam hoje uma rotina de violência, longe da promessa de uma comunidade modelo à época da chegada dos militares.

A reportagem do UOL ouviu moradores da favela um ano após o decreto de intervenção federal na segurança pública fluminense, que vigorou entre fevereiro e dezembro de 2018 e completa um ano neste sábado (16).

A sensação de insegurança na região que compreende a Vila Kennedy e adjacências reflete um aumento de 14% no número de homicídios dolosos (com intenção) e uma alta de 182% nos registros de tiros ou tiroteios entre março e dezembro e o mesmo período do ano anterior. Os dados são do ISP (Instituto de Segurança Pública), órgão do governo fluminense, e do Fogo Cruzado, laboratório de dados que monitora confrontos na região metropolitana do Rio.

No mesmo período, a região da Vila Kennedy registrou aumento de crimes contra a vida e contra o patrimônio:

  • Latrocínios - + 20%
  • Roubos de celulares: + 32%
  • Roubos em coletivos: + 13%
  • Roubos de rua: + 5,3%
  • Roubos a estabelecimentos comerciais: + 4,5%
  • Furto de bicicletas: + 320%

Na outra ponta, caíram o número de mortes pela polícia e roubos de carga, um problema considerado crônico nas principais vias de acesso à capital fluminense --a Vila Kennedy se localiza à margem da avenida Brasil, uma das principais do Rio.

  • Mortes por agentes de segurança: - 30%
  • Roubos de carga: - 16%
  • Roubos de veículos: - 24%
  • Tentativas de homicídio: - 25%

Entre os índices relacionados ao desempenho policial, estão:

  • Cumprimentos de mandados de prisão: - 30%
  • Prisões em flagrante: - 16%
  • Cumprimentos de mandados de busca e apreensão: - 7,5%
  • Apreensão de drogas: + 27%

Para especialistas em segurança pública, esses índices somados a um cenário de violência da Vila Kennedy mostram que as Forças Armadas não priorizaram ações de inteligência.

O antropólogo e professor de Segurança Pública da UFF (Universidade Federal Fluminense) Lenin Pires diz que a ação militar se concentrou apenas em estratégias ostensivas, porém sem caráter preventivo.

Para a sociedade, foi uma ação pontual, não houve mudança. O foco das operações foi de caráter ostensivo e com foco no roubo de cargas. O objetivo era conter o gargalo da região que abrange também [o bairro de] Santíssimo e outros pontos críticos da zona oeste e foi isso que fizeram. O trabalho de inteligência da Polícia Civil, atrelado ao da Justiça e da PM ficou fora desse acordo.

Lenin Pires, professor de Segurança Pública da UFF

O cientista político e pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) João Trajano afirmou que, frente a confrontos registrados na região, nem mesmo os índices positivos são tão significativos.

"A gente teria de acompanhar por mais dois, três, quatro anos a manutenção dessa tendência para poder divisar algum saldo positivo dessa intervenção, sobretudo tendo em vista o volume de recursos humanos e recursos materiais investidos."

O que a gente percebe é que a intervenção foi um passo que precede outro passo de radicalização do uso da força por parte de agentes policiais.

João Trajano, professor da Uerj

A Vila Kennedy foi o bairro que registrou mais disparos com armas de fogo no Rio em 2018. Mesmo após o fim da intervenção no estado, o local continuou liderando o ranking do Fogo Cruzado em 2019, com 24 disparos em janeiro. No ano passado, foram 365 confrontos registrados com a presença de agentes do estado em ao menos 38 ocorrências.

General Braga Netto faz balanço da intervenção no Rio

bandrio

"Comunidade sitiada", diz morador

"No último mês, quantas pessoas mortas você viu no seu bairro? Eu vi cinco. Imagina acordar e ir dormir no corredor da casa que tem uma parede a mais para garantir a sua segurança? A sensação é de comunidade sitiada", desabafou um morador da Vila Kennedy, que não terá a identidade revelada por motivos de segurança. Ele acrescentou que traficantes continuam agindo na região.

"A intervenção não conseguiu sequer acabar com as bocas de fumo da comunidade. Elas nem foram removidas na época dos militares e continuam fortes, nos mesmo lugares, inclusive perto de escola!", afirmou um comerciante que tem um mercadinho no bairro há seis anos. "Que resultados foram alcançados? Não vi nenhum."

"Não tem hora para tiro aqui. Qualquer hora é hora. Qualquer dia é dia. Venderam uma ilusão de segurança pra gente, mas isso ficou somente nos nossos sonhos. As promessas continuaram como promessas. A Vila Kennedy foi uma ação de marketing de mal gosto com os moradores", disse uma profissional da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) localizada no bairro.

Para o ex-capitão do Bope e especialista em Segurança Pública, Paulo Storani, as forças de segurança erraram ao citar que a Vila Kennedy seria o laboratório da intervenção no Rio. Ele comparou o processo à política de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).

"Criou-se uma expectativa natural daquelas pessoas viverem em segurança. Achar que nós vamos resolver o problema com mobilização de efetivos e controle de territórios por força policial... Segurança pública vai muito além das questões relacionadas à ação da Polícia Militar ou Civil ou das Forças Armadas quando atuam para garantir a lei e a ordem", disse.

Para Storani, a ausência de políticas de segurança abre espaço para o enfrentamento entre forças de segurança e criminosos. "O problema todo é que você não intervém no ciclo vicioso de produção de jovens que entram cada vez mais precocemente na atividade criminosa."

O que diz o ex-porta-voz da intervenção

A reportagem do UOL procurou o porta-voz do CML (Comando Militar do Leste) e, durante a intervenção, do Comando Conjunto (órgão que acabou juntamente com a intervenção), coronel Carlos Frederico Cinelli, sobre as críticas à ação na Vila Kennedy.

"A Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro encerrou-se em 31 Dez 2018, conforme previsto no Decreto Presidencial. Permaneceram ativos apenas alguns cargos ligados à Secretaria de Administração, para gestão do legado tangível. Todas as informações, posicionamentos, avaliações e números oficiais foram publicamente apresentados pelo Gabinete de Intervenção Federal até aquela data", afirmou Cinelli, por meio de nota.

Militares ocuparam a Vila Kennedy pela primeira vez em 23 de fevereiro. Além de promoverem cercos na comunidade, os militares desobstruíram vias por meio da retirada de barricadas instaladas pelo tráfico, que voltaram a instalar os obstáculos. Ações de revista também viraram rotina em acessos da favela. 

Em maio, o Exército entregou o policiamento à Polícia Militar após pôr fim à UPP da região e também de outros pontos no estado. A UPP da Vila Kennedy passou a ser unidade destacada do 14º BPM (Bangu).