"Risco calculado", disse Dallagnol sobre uso de prova ilegal em prisão
Resumo da notícia
- Desde seus primórdios, a Lava Jato usou dados obtidos de forma ilegal
- As informações foram usadas para pedir a prisão de suspeitos
- Dallagnol foi alertado sobre o fato, mas minimizou: "Risco calculado"
- Ele sabia que as provas poderiam ser anuladas: "Se cair, chega pelo canal oficial e pedimos de novo"
- A Lava Jato sustenta que em nenhum dos casos violou as normas
Conversas privadas de procuradores da Lava Jato entregues por fonte anônima ao site The Intercept Brasil e analisadas em parceria com o UOL mostram que o uso de informações obtidas ilegalmente do exterior ocorre desde os primórdios da operação. Essas provas ilícitas foram usadas pelos procuradores para conseguir prisões e outras medidas cautelares. O coordenador da força-tarefa em Curitiba, Deltan Dallagnol, foi alertado sobre esse tipo de prática, mas minimizou o problema.
Entre o fim de 2014 e o início de 2015, os procuradores da Lava Jato obtiveram por meios ilegais dados da Suíça e de Mônaco, respectivamente, sobre os ex-diretores da Petrobras Paulo Roberto Costa e Renato Duque.
Dallagnol trouxe em segredo um pen drive com informações bancárias de Paulo Roberto Costa, obtido em reunião com os investigadores suíços em novembro de 2014. Após a remessa de documentos ser contestada judicialmente pela Odebrecht, a Lava Jato tentou alterar registros na PGR (Procuradoria-Geral da República) para simular que as informações tiveram origem lícita, segundo revelam mensagens vazadas.
Já com Renato Duque, mesmo alertado, Dallagnol usou dados bancários recebidos fora dos canais de cooperação para obter a prisão do ex-diretor de Serviços da Petrobras em março de 2015.
A Lava Jato sustenta que em nenhum dos casos violou as normas de cooperação internacional.
"Se cair, chega pelo canal oficial e pedimos de novo", disse Deltan sobre prisão de Duque
Em 10 de março de 2015, Dallagnol é alertado pelo procurador regional da República Vladimir Aras —que comandava a SCI (Secretaria de Cooperação Internacional) do MPF— sobre o risco de cometer violações ao usar informações passadas por autoridades de Mônaco à revelia do DRCI (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional), órgão do Ministério da Justiça que atua como autoridade central em grande parte das cooperações do Brasil como outros países.
No diálogo, Dallagnol expõe o ponto central do que seria a "lavanderia de provas" que havia criado: usaria as remessas informais de informações do exterior para sustentar o ritmo acelerado de operações do começo da Lava Jato e, caso houvesse contestações ao rito adotado, obteria as mesmas informações pelo canal oficial para legalizar as evidências.
O UOL manteve as grafias das mensagens tal qual constam nos arquivos enviados ao Intercept, mesmo que contenham erros ortográficos.
"Delta, melhor ter cuidado. Que tipo de situação é? As defesas podem questionar o canal. O DRCI também", disse Aras, um dos maiores aliados de Dallagnol no MPF (Ministério Público Federal).
O coordenador da Lava Jato em Curitiba responde: "Concordo. Não usaria para prova em denúncia, regra geral. Vamos usar para cautelar. Se cair, chega pelo canal oficial e pedimos de novo. Trankilo, Mestre".
A conversa entra pela madrugada e manhã de 11 de março. Aras, que à época era o responsável por zelar pelos ritos de cooperação no âmbito do MPF, segue tentando convencer Dallagnol a não usar as informações recebidas extraoficialmente. Em dado momento, questiona que tipo de provas eram.
"São dados bancários?", pergunta.
"Sim, mas não vou usar como prova de acusação, Vlad.", Dallagnol confirma. "É algo excepcional é justificável."
Aras pergunta se os dados embasariam prisões preventivas. "Vai pedir prisão do Renato duque e do Zelada?", questiona Aras citando os ex-diretores da Petrobras.
Dallagnol desconversa e encerra seu raciocínio com o seguinte argumento, evidenciando que sabia dos riscos ao usar essa tática: "É natural tomar algumas decisões de risco calculado em grandes investigações".
Como suspeitava Aras, Renato Duque seria preso muito em breve —mais precisamente cinco dias depois, na Operação Que País É Esse?, a 10ª fase da Lava Jato.
Porém, Aras nunca tomou nenhuma atitude para impedir a Lava Jato de violar as normas de cooperação internacional. Pelo contrário, em diversos momentos assumiu uma postura de defesa dos procuradores, inclusive em documentos oficiais.
Em chat no Telegram de outubro de 2015, ele articula com Dallagnol uma resposta a questionamentos enviados pelo delegado da Polícia Federal Ricardo Saadi, que à época comandava o DRCI. Saadi perguntou ao MPF sobre uma vinda de investigadores norte-americanos para reuniões com a Lava Jato.
Em meio ao esboço, Aras escreve: "Todos os atos de cooperação têm observado os tratados aplicáveis e a legislação brasileira". O texto é elogiado por Dallagnol.
Posteriormente, o coordenador da Lava Jato usaria todo o prestígio obtido com a operação para fazer lobby com ministros do STF, integrantes do governo Bolsonaro e senadores, com o objetivo de emplacar Vladimir Aras como novo procurador-geral da República, conforme revelo reportagem do UOL em parceria com o Intercept.
Sergio Moro embasa a ordem de prisão de Renato Duque citando que a Lava Jato anexou dados sobre contas bancárias que ele mantinha em Mônaco.
"No processo 5004367-57.2015.4.04.7000, a pedido do Ministério Público Federal, decretei a quebra de sigilo bancário e o bloqueio de ativos mantidos em contas secretas titularizadas por Renato de Souza Duque e mantidas em instituições financeiras no Principado de Mônaco. Sobreveio parcial resposta das autoridades daquele país. As informações recebidas revelam, conforme relata o MPF e os documentos por ele anexados, que, durante as investigações da Operação Lava Jato, Renato de Souza Duque transferiu os saldos milionários de suas contas na Suíça para contas em instituições financeiras em outros países, entre eles o Principado de Mônaco", escreveu Moro na decisão judicial.
Antevendo a possibilidade de Duque e outros réus contestarem os vícios na troca de informações com autoridades estrangeiras, a Lava Jato tenta constranger os acusados a não moverem ações no exterior sobre possíveis irregularidades. É o que consta na denúncia do MPF na Operação Que País É Esse?, protocolada no mesmo dia em que Duque foi preso.
Um dos pedidos feitos a Moro é que "sejam todos os denunciados alertados de que qualquer óbice à vinda de documentos do exterior deve ser deduzido perante a justiça brasileira, mais especificamente perante este juízo, sob pena de se caracterizar obstrução à justiça".
Lava Jato tentou mudar registro sobre pen drive trazido da Suíça
O fluxo de informações fora dos canais institucionais ocorre desde o início da Lava Jato, conforme revelam as conversas vazadas e documentos obtidos pelo UOL em ações judiciais. Já em 2014 houve transmissão de documentos de maneira irregular. Posteriormente, a Lava Jato tentou alterar registros internos do MPF com o objetivo de ocultar a origem informal das provas.
O primeiro encontro entre a Lava Jato e os investigadores suíços ocorreu em novembro de 2014. Segundo reportagens publicadas à época, os procuradores de Curitiba voltaram do exterior com "várias pastas cheias" de extratos bancários de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobras e um dos primeiros delatores importantes da operação.
Além de documentos físicos, Dallagnol trouxe em segredo um pen drive com dados bancários de Costa. As informações viriam a ser cruciais para o avanço da Lava Jato, já que identificaram pagamentos de propina da Odebrecht, confirmados pelo ex-diretor da Petrobras em sua delação premiada.
Segundo especialistas, a prática configura irregularidade porque qualquer remessa de informações oriundas de cooperação internacional deveria chegar através de canal oficial, o DRCI. A situação foi alvo de questionamentos na Justiça pela Odebrecht, conforme apurou o UOL.
Em 28 de novembro, Dallagnol falou ao jornal "O Globo" sobre a importância daqueles registros. "Estes documentos vão nos permitir chegar a vários outros envolvidos no esquema", disse.
Porém, nos bastidores, o coordenador da Lava Jato sabia que esses dados bancários não poderiam ser usados formalmente em investigações.
Em 9 de dezembro do mesmo ano, Deltan e seu colega Athayde Ribeiro Costa encaminharam ao procurador da República Daniel Salgado, à época chefe da SPEA (Secretaria de Pesquisa e Análise) da PGR (Procuradoria-Geral da República), o ofício 9587/2014. Eles solicitaram a análise do pen drive "contendo extratos e dados de contas bancárias mantidas por Paulo Roberto Costa no exterior, recebidos informalmente".
Diante dessas notícias, a Odebrecht tentou em fevereiro de 2015 obter informações sobre a diligência junto ao Ministério da Justiça, por meio da Lei de Acesso à Informação, mas foi barrada pelo então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Após a recusa, a empreiteira obteve uma liminar em um mandado de segurança no STJ (Superior Tribunal de Justiça), ganhando acesso às informações.
No processo, Dallagnol encaminha um ofício mostrando que o DRCI recebeu os mesmos documentos por via oficial em 22 de janeiro de 2015 —um mês e meio depois de a Lava Jato já ter pedido a análise dos dados bancários recebidos "informalmente" durante a viagem.
A defesa da Odebrecht então anexou no processo um lote de documentos confirmando que Dallagnol trouxe informalmente os documentos. Trata-se de dois ofícios de autoridades suíças, em francês, sobre a troca de provas com os brasileiros.
Um deles —enviado pelo MP suíço ao Ministério da Justiça do país europeu— fala especificamente das informações das contas bancárias de Paulo Roberto Costa. O procurador Luc Leimgruber —aliado próximo de Dallagnol— encaminha apenas no dia 5 de janeiro de 2015 as informações pelo canal oficial de cooperação. Mas ressalta: diante da urgência, uma cópia de mídia USB foi entregue em mãos no dia 28 de novembro de 2014 ao procurador Deltan Dallagnol, provando o fato de que a Lava Jato recebeu as provas fora dos canais oficiais.
De posse dessas informações, a Odebrecht chegou a traçar estratégias jurídicas para anular as investigações sobre a empresa no Brasil. Um dos elementos contestados era o ofício de Dallagnol e Athayde à SPEA, o que gerou preocupação na Lava Jato e suscitou uma tentativa de mudar os registros oficiais conforme revela conversa em 6 de novembro de 2015 entre o coordenador da Lava Jato e um servidor público do MPF no Paraná, cujo nome será preservado por não se tratar de pessoa de interesse público.
"me manda aqui por favor aquele laudo sobre ascontas do PRC [Paulo Roberto Costa] que menciona o pendrive que trouxemos", solicita Dallagnol.
O servidor explica que a análise havia sido feita com o pen drive trazido por Dallagnol, e não com base nas informações que chegaram por via oficial. Ele diz ainda que a SPEA alterou o ofício original para atribuir ao DRCI a remessa do pen drive, simulando que as informações tiveram origem legal. Mas, segundo ele, se esqueceu de alterar uma nota de rodapé do documento, que ainda fazia referência a Dallagnol como origem das informações. O fato havia sido questionado pela Odebrecht.
"Diante disso o Dr. Welter [Antônio Carlos Welter, membro da Lava Jato] solicitou que o Gilberto SPEA/BSB fizesse uma informação explicando que o relatório trata de dados recebidos formamelmente do DRCI (contas SYGNUS e QUINUS que foram usadas no processo da Odebrecht)", lembra o auxiliar.
O servidor então envia uma série de documentos em PDF e Deltan apenas agradece as informações, sem contestar a manobra.
As contas das duas empresas offshore, que constavam no pen drive, foram citadas por Paulo Roberto Costa em sua delação premiada como o meio pelo qual recebeu US$ 23 milhões de propina da Odebrecht —uma das primeiras provas de envolvimento da empreiteira no esquema de corrupção da Petrobras.
Outro lado: o que diz a Lava Jato
A Lava Jato sustenta que não cometeu nenhuma irregularidade ao trazer o pen drive com documentos bancários sobre Paulo Roberto Costa.
"No caso específico das contas de Paulo Roberto Costa, o (MPF) já prestou informações sobre tal fato à Procuradoria-Geral da República (PGR) para que instruísse o MS nº 22.007, onde este tema foi exaustivamente debatido. Naquela oportunidade foi esclarecido que o MPF efetivamente recebeu em mãos documentos referentes ao ex-diretor da Petrobras. Pelo acordo de colaboração celebrado com o MPF, Paulo Roberto Costa expressamente autorizou ao MPF e à Polícia Federal (PF) o acesso e transferência de todos os documentos relativos às contas das offshores por ele controladas. Além disso, o Juiz Federal da 13ª Vara Criminal também havia quebrado o sigilo dessas contas, autorizando o acesso do MPF a elas. Os documentos recebidos para fins de inteligência com autorização de Paulo Roberto Costa foram encaminhados para análise interna no MPF (SPPEA - Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise). No curso dessa análise os documentos efetivamente utilizados nas ações penais chegaram oficialmente por meio da autoridade central, tendo sido também encaminhados à SPPEA, aproveitando-se a análise já iniciada, procedendo-se à conferência das informações e a elaboração de relatório, não havendo simples acerto de datas".
Porém, conversas revelam que Dallagnol e Vladimir Aras, em ambiente privado, tinham uma percepção diferente da situação. Os dois conjecturam sobre o pen drive entre os dias 4 e 5 de novembro de 2015, quando o site Conjur procurou a PGR para tratar de uma reportagem justamente sobre a chegada dessas informações ao Brasil.
Aras envia ao coordenador da Lava Jato um esboço de nota sobre o tema. Dallagnol então sugere algumas alterações, para adequar a resposta à sua visão.
"Sugeriria alterar também o seguinte trecho: "A tramitação pela autoridade central ou por via diplomática é um requisito sempre observado pelo Ministério Público Federal em todos os pedidos de cooperação"", escreve às 21h28, antes de completar dizendo que não é obrigatório que as informações passem pela autoridade central. "Porque entendemos (eu ao menos entendo) que isso é prescindível. Atendemos apenas por cautela."
No dia seguinte, após receber uma nova mensagem do jornalista responsável pela reportagem, Aras não se mostra disposto a confirmar que o pen drive foi trazido por Deltan. "Podemos dizer algo nesse sentido? Eles querem que confirmemos essa entrega. Não sei se é prudente", alerta. Porém, Dallagnol diz que não há problema em confirmar.
Mais tarde, às 16h59 do dia 5 de novembro, Aras avalia que, diante da possível polêmica provocada pela reportagem, o MPF teria que se mover para conseguir criar uma jurisprudência sobre a prática, que não existia naquele momento.
"Lamento que tenhamos chegado a esse ponto. Acho que a cooperação direta é importante, uma meta a alcançar com o tempo e estamos estrategicamente trabalho nisso, como já disse. Como já conversamos, acho que criamos um risco com esse procedimento e agora temos de convencer o STJ e o STF do nosso ponto de vista e tentar estabelecer jurisprudência como no caso Berezovski".
Outro lado: o que dizem outros citados na reportagem
Questionada sobre alteração em documento da SPEA a pedido da Lava Jato, a Procuradoria-Geral da República disse que "não se manifesta sobre material obtido de forma ilícita", em referência aos vazamentos das conversas.
O órgão destacou ainda que as perguntas referiam-se "a fatos anteriores à atual gestão" —iniciada ontem, quando o procurador-geral da República Augusto Aras tomou posse no cargo, depois de ter sua nomeação aprovada pelo Senado.
Por meio de nota, o Ministério Público da Suíça afirmou apenas que pauta seu trabalho conforme as leis suíças.
"O Escritório do Procurador Geral da Suíça está conduzindo seus processos criminais com base na legislação suíça pertinente", diz o órgão, em resposta ao UOL.
Questionado, o MP suíço não comentou o fato de Dallagnol ter trazido em segredo ao Brasil um pen drive com dados de Paulo Roberto.
O Ministério Público de Mônaco foi procurado, mas ainda não retornou.
O procurador regional da República Vladimir Aras também foi procurado, mas ainda não se manifestou.
O espaço continua aberto para eventuais manifestações.
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