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Bairro do Rio disputado por tráfico e milícia teve 17 horas de tiroteio

26.mar.2018 - Milicianos tentaram invadir a favela Bateau Mouche, controlada pelo CV - Jose Lucena/Estadão Conteúdo
26.mar.2018 - Milicianos tentaram invadir a favela Bateau Mouche, controlada pelo CV Imagem: Jose Lucena/Estadão Conteúdo

Lola Ferreira e Luis Kawaguti

Do UOL, no Rio

28/03/2018 04h00

“Esse é um bairro pobre e ninguém nem lembra que existe. Se não está nos holofotes, ninguém dá atenção.” O desabafo é de um morador da Praça Seca, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, que pediu para não ter o nome revelado por medo da violência. O bairro, que vive uma guerra entre milicianos e traficantes, sofreu uma escalada no número de tiroteios no mês passado --de 9 em janeiro para 47 em fevereiro-- e, nesta semana, registrou em um só dia 17 horas com disparos de armas de fogo e tiroteios.

Os números são do Fogo Cruzado, laboratório de dados de violência armada que faz levantamento de conflitos no Rio a partir de fontes abertas, como órgãos de imprensa e mídias sociais. A elevação dos casos ocorreu no mesmo mês em que começou a intervenção federal no Rio. Desde então, não houve nenhuma ação das Forças Armadas na região. Uma operação do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) foi realizada na segunda-feira (26) depois que um helicóptero da TV Globo flagrou milicianos atirando e correndo com fuzis por uma grande avenida do bairro.

A Secretaria de Segurança Pública não deu entrevista. Mas fontes ligadas à cúpula da intervenção afirmaram que os órgãos policiais estariam fazendo ações de inteligência para prender chefes do tráfico e da milícia na região. Uma dessas fontes apontou como resultado dessas ações a prisão, no início de fevereiro, de um criminoso conhecido como Júnior Play, suposto chefe de milicianos da região. O UOL apurou que os interventores não descartam levar as Forças Armadas para a região.

Na manhã desta quarta-feira (28), simultaneamente à publicação desta reportagem, a Polícia Militar lançou uma operação de segurança com o Batalhão de Choque e o Batalhão de Ações com Cães --unidades de elite da polícia-- em uma das favelas da Praça Seca. Ainda não há informações sobre o resultado da ação.

Ações da polícia ainda não foram suficientes para aumentar a sensação de segurança na região, segundo moradores ouvidos pela reportagem.

Amanda, moradora de região e que pediu para ser identificada sem o sobrenome, diz que os moradores que vivem em territórios dominados pela milícia ou pelo tráfico não têm paz. Apenas uma via, a rua Cândido Benício, separa fisicamente as comunidades controladas por milicianos e pelo Comando Vermelho, que estão em guerra no bairro.

A milícia é o nome genérico dado a organizações formadas por policiais e ex-policiais que controlam regiões e cobra taxas de “proteção” de forma semelhante a organizações mafiosas. O Comando Vermelho é uma das mais fortes facções criminosas dedicadas ao tráfico de drogas no Rio.

“Vivemos à mercê deles. O lado dominado pelos traficantes tem que se acostumar com barricadas pelas ruas, bandidos desfilando no bairro com tranquilidade e há bocas de fumo em cada esquina. Do lado da milícia, moradores também obedecem a ordens, pagam a taxa de segurança, de água e TV a cabo. Os moradores têm que se adequar às ordens de cada facção, já que o Estado nos ignora e finge que não existimos”, disse Amanda.

“Não posso chegar depois das 21h30, porque eu tenho medo: passam homens em motos, armados, ou correndo pela rua. Então, nunca sei se vão mexer comigo ou não. Nem no portão eu fico, me sinto em cárcere privado”, disse ela.

Áreas instáveis

Desde o início da intervenção federal, as maiores operações de segurança envolvendo militares das Forças Armadas ocorreram em favelas em que não havia sinais aparentes de conflitos armados entre criminosos de grupos diferentes, como ocorre na Praça Seca. A maioria era controlada por apenas um bando criminoso.

As ações ocorreram no Complexo do Lins e Kelson’s, na zona norte; Jardim Catarina, em São Gonçalo; Viradouro, em Niterói; Vila Vintém, Corea, Vila Aliança e Vila Kennedy, na zona oeste. A última foi tratada como a experiência piloto de ações ostensivas da intervenção.

Segundo fontes ligadas à cúpula da intervenção, a escolha da Vila Kennedy teria acontecido porque, segundo informações de inteligência, a região estaria prestes a se tornar palco de conflitos armados entre as facções criminosas Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro. A insistência das forças de segurança para controlar a região teria ocorrido para evitar que isso acontecesse --o que, segundo a fonte, poderia afetar seriamente a avenida Brasil, uma das principais vias de acesso ao Rio.

As ações das Forças Armadas em favelas, segundo a mesma fonte ligada à cúpula da intervenção, não acontecem aleatoriamente. São pautadas por esse tipo de ação de inteligência e por fatores logísticos, como proximidade de bases militares, recursos disponíveis, tipo de terreno e riscos para a população local.

A possibilidade de causar ferimentos ou mortes entre moradores seria um dos motivos pelo qual as Forças Armadas não entraram na favela da Rocinha, na zona sul. Mesmo quando auxiliaram as forças policias a enfrentar o conflito entre as fações Comando Vermelho e ADA (Amigos dos Amigos) no ano passado, os militares realizaram um cerco, sem entrar em combate direto com as facções. O trabalho de segurança na Rocinha está a cargo principalmente da Polícia Militar.

RJ - TIROTEIO-COMUNIDADE-BATEAU-MOUCHE - GERAL - Intenso tiroteio na Comunidade Bateau Mouche no Rio de Janeiro (RJ), nesta segunda-feira (26). Milícianos da Comunidade da Chacrinha invadiram a região. A polícia faz operação na região. O carro utilizado pelos bandidos foi apreendido e guinchado. - Jose Lucena/Estadão Conteúdo - Jose Lucena/Estadão Conteúdo
Marcas de tiroteio em favela no bairro Praça Seca, na zona oeste do Rio
Imagem: Jose Lucena/Estadão Conteúdo

Conflito na Praça Seca

Segundo informações de inteligência dos órgãos de segurança pública, o conflito na Praça Seca se intensificou há pouco mais de dois meses quando o suposto chefe do Comando Vermelho, Luís Cláudio Machado, o Marreta, deu uma ordem de dentro da prisão para que seus subordinados ampliassem o comércio de drogas no bairro.

Eles teriam se aproveitado de um racha entre milicianos que controlavam a área para botar o plano em prática. Os embates entre traficantes e milicianos vêm se intensificando, segundo o Fogo Cruzado. Após os 47 tiroteios registrados em fevereiro, de 1º a 26 de março, o número de episódios de disparos chegou a 30.

No último mês, ao menos três pessoas foram mortas vítimas de armas de fogo --uma mulher foi atingida por bala perdida.

No dia 18 de março, o tiroteio perdurou por 13 horas e, no dia 26, chegou a 17 horas ininterruptas, segundo levantamento da organização. Na ocasião, milicianos tentavam retomar áreas controladas pelo Comando Vermelho. Na última segunda-feira, o Fogo Cruzado recebeu a primeira notificação de disparo de arma de fogo/tiroteio por volta das 4h30 e o último registro aconteceu às 21h26 --além das notificações via redes sociais, o laboratório de dados sobre violência contou com relatos de moradores da Praça Seca.

Os milicianos controlam a favela conhecida como Chacrinha e os traficantes a favela chamada Bateau Mouche.

Outra moradora, que também pediu para não ser identificada por temer retaliações, contou à reportagem que esperava uma melhora com o anúncio da intervenção federal. “Eu tinha uma esperança com a intervenção federal, mas a esperança está indo por água abaixo. Eu não vejo nada ser feito por aqui, nunca vi o Exército por aqui.”

A fonte ligada à cúpula da intervenção afirmou que as grandes operações não têm sido realizadas na Praça Seca porque elas teriam se provado pouco eficientes no passado --na medida em que os milicianos deixavam a região ao notar a aproximação de um grande efetivo das forças de segurança. Porém, segundo ela, uma ação das Forças Armadas na região não está descartada, desde que sejam obtidas informações de inteligência que justifiquem que o local seja cercado para que suspeitos sejam capturados.