Atingidos temem que Vale desconte R$ 100 mil doados de indenizações futuras
A Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale afirmou nesta terça-feira (5) que falta transparência por parte da mineradora nos acordos firmados para a doar R$ 100 mil a cada família de mortos ou desaparecidos por causa do rompimento da barragem da mineradora em Brumadinho (MG).
Um dos receios do grupo é que a mineradora repita a estratégia jurídica vista em Mariana -- onde uma barragem se rompeu há três anos e deixou 19 mortos. Lá, a Fundação Renova, ligada à Vale, conseguiu da Justiça uma autorização para descontar valores pagos emergencialmente a pescadores de outros programas de indenizações.
A decisão foi emitida durante o recesso de fim de ano e revelada pelo UOL.
A associação também se queixa de que a Vale tenha se negado a fornecer uma cópia do contrato de doação firmado por quem recebe os R$ 100 mil em Brumadinho. O grupo documenta a atuação dos órgãos públicos e da empresa na assistência às vítimas e seus familiares.
Após a publicação da reportagem, a Vale afirmou que não há contrato firmado, e por isso ele não foi divulgado. Ao solicitar o pagamento, diz a mineradora, as famílias assinam um "Termo de Recebimento" ao qual a reportagem teve acesso.
O documento diz que "o valor doado não representa qualquer adiantamento de reparação civil ou criminal ou renúncia total ou parcial a tais direitos".
Destituição da diretoria
Em evento organizado hoje, a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale pediu que Conselho de Administração e Conselho Fiscal da Vale destituam sua diretoria executiva e convoquem assembleia geral extraordinária para tratar do desastre.
Três dias após a tragédia, a Vale prometeu que faria uma doação emergencial para as famílias e que o dinheiro não teria relação com possíveis indenizações. Até agora, 134 pessoas tiveram a morte confirmada, segundo último boletim divulgado pelas autoridades que atuam na região, e outras 199 continuam desaparecidas.
Em nota distribuída à imprensa na tarde desta terça-feira, a Vale diz que 107 pessoas já haviam recebido a doação até ontem.
Segundo a articulação, monitorar como esses documentos estão sendo firmados "é essencial para garantir que não haja qualquer direito sendo suprimido nesta pactuação".
A articulação é formada por diferentes grupos, como sindicalistas, ambientalistas, religiosos e acadêmicos do Brasil e de outros quatro países (Argentina, Chile, Peru, Canadá e Moçambique). Há também representantes de moradores de Brumadinho.
"A missão entende que [a minuta de doação] se trata de um assunto de interesse público e que é papel das organizações que atuam por meio da Articulação, bem como de outras organizações e instituições, zelar pelos direitos das populações atingidas", diz relatório divulgado nesta terça-feira.
A Articulação reconheceu que os R$ 100 mil de doação dão "em alguma medida" celeridade e respeito que às famílias afetadas pelo desastre, mas é que preciso conhecer quais exigências foram estabelecidas pela empresa para o efetivo acesso das famílias à quantia.
"[Elas] podem estar impondo a essas pessoas tarefas extras para a obtenção de documentos, gerar embaraços intermináveis e inclusive, em alguns casos, inviabilizar o efetivo recebimento do recurso", diz o documento.
Além dos R$ 100 mil aos familiares de mortos e desaparecidos, a Vale de comprometeu a doar R$ 50 mil para as famílias que moravam na zona de autossalvamento, usada pela empresa em seu plano de emergência para a barragem, e R$ 15 mil para quem não morava, mas desenvolvia atividade rural ou comercial na região.
Os ativistas reclamam que ainda não há informações precisas de como esse pagamento se dará e quem terá o direito de recebê-lo. "Causa preocupação que a empresa utilize algum tipo de cadastro prévio seu, desconhecido da sociedade em geral, como critério para a efetivação desta doação, o que pode vir a significar a redução dos potenciais destinatários dessas doações", diz o texto.
À missão, segundo os ativistas, a Vale não apresentou o plano de emergência que deveria ter para o caso de colapso da estrutura da barragem nem os laudos que atestariam a estabilidade dela. O relatório questiona por que a sirene estava em local que a possibilitasse ser "engolfada" antes que pudesse soar, por que os escritórios e o refeitório estavam próximos à barragem e por que houve a obstrução de rotas de fuga julgadas seguras pela empresa.
Integrantes do Movimento Águas e Serras de Casa Branca-Brumadinho também lançaram um documento afirmando que a empresa já faltava com transparência desde a renovação da licença de operação na mina do Córrego do Feijão, quando um Fórum de Relacionamento com as comunidades da região foi criado. Eles afirmam que erma proibidos de fotografar, filmar e ter acesso às apresentações realizadas pelo corpo técnico da mineradora durante as reuniões.
Denúncia à ONU
As ONGs Conectas, Clínica de Direitos Humanos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) formalizaram hoje uma denúncia contra a Vale na ONU (Organização das Nações Unidas). O documento aponta que a Vale e as autoridades públicas "não tomaram medidas adequadas para evitar novas falhas catastróficas" depois do desastre de Mariana, ocorrido em novembro de 2015.
No texto, as instituições pedem medidas urgentes a serem adotadas pela ONU e governo brasileiro para prevenir que haja danos irreparáveis por causa da tragédia, como a solicitação de informações sobre as medidas de emergência tomadas até agora e as que estão sendo planejadas; adoção de ações para impedir a contaminação do rio São Francisco; monitoramento da qualidade das águas e transparência sobre o nível de toxicidade dos resíduos existentes na lama, entre outras.
"Nesse caso, a negociação e a governança do mecanismo de reparação não devem seguir o mesmo padrão que o criado para remediar o desastre do rio Doce, no qual as empresas detêm um poder desproporcional de decidir quem é afetado, quais são as perdas, direito a recursos e que recursos serão fornecidos", cita trecho do documento.
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