A conta chega: 300 mil vidas

Brasil paga pela falta de coordenação do governo federal na pandemia e pela banalização do vírus

Do UOL, em São Paulo Alexandre Schneider/Getty Images

O Brasil ultrapassa as 300 mil mortes por covid-19 em meio a uma sequência de recordes negativos da pandemia e a uma situação de colapso nos sistemas de saúde de todas as regiões.

Sem uma coordenação clara nas ações de combate ao coronavírus, o país nunca se aproximou de zerar os óbitos pela doença, como aconteceu em alguns países da Europa, que foi epicentro da pandemia. Hoje, vê hospitais públicos e privados lotados, com filas para vagas em UTIs e sem insumos para atendimento a pacientes com covid.

Mesmo assim, governos federal e estaduais se recusam a adotar regras rígidas recomendadas por médicos e cientistas para controle de circulação das pessoas, e muita gente continua saindo de casa. O argumento é que a economia não pode parar. Para tentar reduzir o impacto, no ano passado, foram tomadas medidas como o pagamento do auxílio emergencial, ajuda financeira a empresas para manter empregos, antecipação do 13º a aposentados e do abono salarial. Não foi suficiente.

O lockdown rígido é apontado por especialistas como a iniciativa mais rápida e eficaz para conter o contágio, aliviar o sistema de saúde e reduzir o impacto econômico. Eles não atribuem ao lockdown a possibilidade de fim da pandemia, mas, principalmente, a prevenção ao colapso do sistema de saúde, que acaba vitimando até pacientes de outras doenças.

Nessa visão, a restrição total precisa ser acompanhada de ajuda financeira do governo à população e às empresas, e precisa ser feita de modo coordenado e integrado, com liderança e organização do poder público.

Países como Alemanha e Nova Zelândia —que têm a economia mais estável que o Brasil— proibiram as pessoas de sair de casa, garantiram auxílio financeiro à população e alcançaram bons resultados. O Vietnã, que tem Índice de Desenvolvimento Humano consideravelmente menor que o brasileiro, teve quarentena em locais de maior contágio e investiu no monitoramento de contaminados —conseguiu zerar os casos.

Sem lockdown, vacinação e testagem em massa, a disseminação do vírus não encontra obstáculo no Brasil. Antes de terminar, março atingiu a marca do mês com mais óbitos na pandemia. Na última semana, o país foi responsável por uma em cada quatro mortes por covid no mundo. Só ontem foram mais de 3.000.

Afinal, de quem é a culpa?

Do governo federal

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nunca teve um plano concreto de combate à covid. Desde o começo da pandemia, foi contra o uso de máscaras e o isolamento social, e deixou o ônus político da decisão para governadores e prefeitos.

Ontem, em pronunciamento, mudou o tom e prometeu vacina a todos neste ano. Mas mentiu sobre ações de controle da doença. Sob pressão, anunciou hoje um comitê anticovid —porém sem detalhes sobre a data de início de trabalho e como ele irá funcionar.

Em conversas com apoiadores, Bolsonaro costuma provocar aglomerações, questiona a lotação de UTIs e lança dúvidas sobre os imunizantes.

"No que depender de mim, nunca teremos lockdown", disse, em 3 de março. Na semana passada, pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) a suspensão de decretos com restrições no Distrito Federal, na Bahia e no Rio Grande do Sul. O ministro Marco Aurélio Mello negou.

Ele também interferiu no Ministério da Saúde, engessando o trabalho na pasta que era referência em planos de vacinação e que já liderou o combate a endemias (como as de H1N1 e da febre amarela). Trocou quatro vezes de ministro na pandemia —a posse do cardiologista Marcelo Queiroga foi ontem, sem cerimônia e fora da agenda oficial.

Em vez de negociar vacinas, a gestão do general Eduardo Pazuello, que acaba de ser exonerado, focou na defesa do tratamento precoce, com medicamentos sem eficácia comprovada contra o coronavírus, como cloroquina e ivermectina.

Para a ONU (Organização das Nações Unidas), o presidente é responsável por uma "tragédia humanitária".

Dos governos locais

Na falta de um plano nacional, coube a estados e municípios tomarem decisões mais duras. Até fevereiro, decretaram medidas de restrição consideradas "tímidas" por especialistas, para evitar desgaste político.

No início deste mês, com o agravamento da situação, 21 governadores assinaram uma carta cobrando ações do governo federal. Entre os que não assinaram estava o titular do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PSC), que se absteve com receio de desagradar Bolsonaro.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), nem sempre acata orientações do Centro de Contingência. Ele já sinalizou que poderia adotar lockdown, mas manteve as restrições da fase emergencial.

Com hospitais lotados, as prefeituras começaram a se mobilizar, mas continuam pedindo recursos de estados e do SUS (Sistema Único de Saúde).

Em Patos de Minas (MG), sem vagas nos hospitais, o prefeito Luís Eduardo Falcão (Podemos), que é empresário e já se tratou com cloroquina, impôs toque de recolher e fechamento do comércio, sob protestos. Em Ji-Paraná (RO), Isaú Fonseca (MDB) diz que as medidas foram aceitas pois "todo mundo aqui já perdeu alguém".

Em Araraquara (SP), Edinho Silva (PT) decretou lockdown quando não conseguia mais atender ninguém e viu a fila de internações sumir —outras cidades paulistas seguiram a iniciativa. Bruno Covas (PSDB) antecipou os feriados até 2022 na capital, depois que um jovem de 22 anos morreu à espera de vaga na UTI.

Faltou ao governo federal o diálogo com os setores da economia para explicar as vantagens de um lockdown verdadeiro. Mostrar que é preferível ficar dois meses fechado totalmente, do que passar dois anos abrindo e fechando continuamente.

Paulo Almeida, advogado e diretor do Instituto Questão de Ciências

De empresários e igrejas

A cada anúncio de restrição, adversários políticos e setores econômicos pressionam as autoridades para alívio das medidas, como aconteceu em Manaus, em dezembro, e em Brasília, no fim de fevereiro. Os donos das redes Havan e Madeiro e outros empresários ganharam notoriedade por protestarem publicamente contra a quarentena.

No ano passado, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo defendeu a possibilidade de prefeitos flexibilizarem as regras impostas pelo governo estadual.

As igrejas também entram na discussão. No início de março, Doria incluiu atividades religiosas na lista das essenciais, mas foi pressionado, inclusive pelo Ministério Público, e acabou fechando os templos.

Nem mesmo o futebol escapou das negociações. No Rio, em maio, a federação estadual fez uma carta, sem as assinaturas de Fluminense e Botafogo, pedindo a volta dos jogos. Partidas do Paulistão serão realizadas em Volta Redonda, no Rio, depois que a federação de São Paulo negociou dez respiradores e monitores de leitos de UTI com a prefeitura fluminense.

Quem não é atendido recorre à Justiça. Há dois exemplos recentes no estado de São Paulo: a Associação Comercial e Industrial de Taubaté entrou com ação para que o município permanecesse com serviços não essenciais abertos e uma academia de Carapicuíba conseguiu manter o funcionamento.

Muitos comerciantes também se aproveitam da confusão nos discursos oficiais e continuam funcionando, sem respeitar as restrições.

Dos cansados e dos negacionistas

Com 300 mil mortos, ainda há pessoas que não se deram conta da gravidade da covid-19 e continuam saindo de casa. Há ainda quem cansou da quarentena e os que não podem ficar confinados —pois precisam garantir o dinheiro para pagar as contas.

Segundo pesquisa Datafolha divulgada em 17 de março:

  • 47% da população toma cuidado, mas ainda sai para trabalhar ou outras atividades.
  • O nível das pessoas que acham que o isolamento tem que ser mantido nunca foi tão baixo: 59%. No começo da pandemia, era 76%.
  • E o número de pessoas que acham que o isolamento deve acabar é de 30% --12 pontos percentuais acima do que era no começo da pandemia.

Por outro lado, a proporção de brasileiros com muito medo do coronavírus nunca foi tão alta: 55%.

"O desespero de não saber quando a situação atual vai acabar leva algumas pessoas ao limite do isolamento social", diz a psicanalista Wania Cidade.

Em São Paulo, a fiscalização tem encontrado festas cheias, bares e casas noturnas funcionando. Na zona norte da capital, uma mãe lamentava que o filho internado tinha ido a bailes funk na pandemia. "A gente avisa. Eu falava dos casos na televisão, mas não tinha jeito", disse.

Em Florianópolis, uma estudante de enfermagem lamentou que o pai chamava a covid de "gripezinha". Com pulmões comprometidos, ele adaptou cilindros de mergulho para tentar respirar.

"Quando se nega que há um aumento do número de casos, que é preciso tomar outras medidas que não só a vacinação, o que vemos é o caos em que estamos vivendo", diz a sanitarista e epidemiologista Carla Domingues.

Se no começo a covid-19 teve uma disseminação maior na população mais carente e idosa, hoje ela está democrática. Atinge o rico e o pobre, o jovem e o idoso.

Carla Domingues, sanitarista e epidemiologista que liderou o Plano Nacional de Imunizações de 2011 a 2019

Quem paga a conta?

Médicos e enfermeiros estão se deparando com as enfermarias e UTIs com mais crianças, jovens e adultos abaixo dos 60 anos. Eles demoram a buscar atendimento, chegam com estado de saúde mais grave e ocupam os leitos por mais tempo —o que contribui para a lotação dos hospitais.

O percentual de mortes de pessoas desta faixa etária saltou 35% em março, na comparação com o ano passado. Em 2020, os óbitos entre a faixa etária até 59 anos representavam 22,9% do total pela covid-19. Em março, passaram a representar 31% do total.

Com as unidades de saúde cheias, quem precisa de atendimento para a covid ou qualquer outro problema não é atendido —não importa a classe social ou o cargo que ocupa.

Sem oxigênio, hospitais da cidade de Clevelândia (PR) foram salvos por cilindros do gás de uma cervejaria. Na capital paulista, pela primeira vez hospitais privados pediram leitos do SUS. Em Porto Alegre, houve fila no cartório para registrar óbitos. Em Goiás, o ex-governador Helenês Cândido estava em um hospital de campanha e morreu à espera de vaga em uma unidade de terapia intensiva.

O número de mortes não para de subir, o ritmo de vacinação continua lento e o Ministério da Saúde altera a previsão de entrega de novas doses a todo momento. Até ontem, 6% da população foi imunizada e ainda não há previsão de quando os mais jovens entrarão nesta lista.

Os estados anunciam medidas econômicas, o governo federal retomou o auxílio emergencial para um grupo mais restrito e com valor mais baixo, mas o "normal" continua distante.

Ninguém consegue fazer mais uma previsão muito apurada, mas será um número explosivo de mortes nos próximos dias.

Miguel Nicolelis, médico e neurocientista

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