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Intervenção no Rio: mandados de busca coletiva são ilegais e criminalizam pobreza, afirmam juristas

Mariana Schreiber - @marischreiber

Em Brasília

20/02/2018 08h13

O ministro da Defesa, Raul Jungmann, disse nesta segunda-feira que está sendo avaliada a possibilidade de uso de mandados de busca e apreensão coletiva nas comunidades do Rio de Janeiro durante a intervenção federal militar na área de segurança.

Isso significa que o governo pretende conseguir decisões na primeira instância da Justiça do Rio autorizando buscas indiscriminadas em casas de moradores das favelas, o que permitiria às forças de segurança entrar em qualquer residência dessas comunidades em busca de drogas, armas ou supostos criminosos.

O ministro chegou a falar na possibilidade também de mandados coletivos de prisão, mas recuou no fim do dia e reconheceu a inconstitucionalidade da medida por meio de nota.

Mesmo os mandados de busca e apreensão coletiva, porém, são alvos de forte controvérsia. Juristas ouvidos pela BBC Brasil afirmaram que tal medida fere princípios constitucionais, como o direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no artigo 5º da Constituição.

A intervenção na Segurança Pública do Rio vai reduzir a violência no Estado?

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"Mandado de busca coletiva, a meu juízo, não é adequado. Tem que caracterizar: rua tal, conjunto tal. Sem isso, pode violar o princípio constitucional da não culpabilidade (princípio da inocência), você estaria colocando um sem número de pessoas (sob busca) e tem que individualizar as pessoas no mandado", afirmou o ex-procurador geral da República Claudio Fonteles.

Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ressalta que não há previsão no Código Penal para mandados coletivos. Na sua visão, a medida parece um "salvo-conduto para as forças armadas e estaduais agirem de forma indiscriminada".

"Quem vai controlar isso, os próprios executores da intervenção? São medidas que podem surtir efeito contra quem se busca concretizar a apreensão, mas vão também atingir muita gente inocente, trabalhadora, que mora nas favelas, nessas zonas de conflito, e vão ter sim suas casas invadidas, sua privacidade vulnerada", criticou.

Precedentes

Embora a medida já tenha sido adotada algumas vezes em comunidades cariocas, o que foi citado como argumento pelo ministro da Defesa, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio, de fevereiro do ano passado, considerou a prática ilegal.

Ela atendeu a um pedido habeas corpus da Defensoria Pública do Estado contra autorização de uma juíza de primeira instância para busca coletiva na Cidade de Deus, comunidade da zona oeste da capital fluminense. A medida foi solicitada após a queda de um helicóptero da Polícia Militar, em novembro de 2016, o que causou a morte de quatro policiais.

Em sua decisão, o relator do caso, desembargador Paulo Baldez, disse que, sem a especificação dos endereços alvos de busca, a medida causava "violação frontal ao Estado Democrático de Direito".

Depois, em agosto, o plantão judiciário do Tribunal do Rio suspendeu mandado que autorizava buscas coletivas no Complexo do Jacarezinho e em quatro comunidades vizinhas, na zona norte do Rio. A medida foi autorizada após a morte do policial civil da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) Bruno Buhler. O caso ainda está em tramitação.

"O padrão genérico e padronizado com que se fundamentam decisões de busca e apreensão em ambiente domiciliar em favelas e bairros da periferia - sem suficiente lastro probatório e razões que as amparam - expressam grave violação ao direito dos moradores", escreveu o desembargador João Batista Damasceno ao suspender a medida.

É possível que a questão seja levada a instâncias superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) - a BBC Brasil não localizou decisões sobre esse tema até o momento na mais alta corte do país. Em declaração ao portal G1, a advogada-geral da União, Grace Mendonça, afirmou que pretende buscar a autorização para essas ações.

"É um tema controverso, mas faremos a defesa da necessidade desses mandados até no Supremo Tribunal Federal", disse.

'Realidade urbanística'

Jungmann anunciou a possibilidade da medida ao deixar a reunião dos conselhos da República e da Defesa Nacional, convocada pelo presidente Michel Temer para discutir a intervenção, que está prevista para durar todo este ano.

O ministro da defesa disse que os mandados coletivos podem ser necessários devido à "realidade urbanística" do Rio.

"Na realidade urbanística do Rio de Janeiro, você muitas vezes sai com uma busca e apreensão numa casa, numa comunidade, e o bandido se desloca. Então, você precisa ter algo que é exatamente o mandado de busca e apreensão e captura coletiva, que já foi feito em outras ocasiões. Ele precisa voltar para uma melhor eficácia do trabalho a ser desenvolvido tanto pelos militares como pelas polícias", disse.

"No lugar de (o mandado judicial) dizer rua tal, casa tal, vai dizer bairro inteiro, dentro de todos os procedimentos legais", acrescentou.

Diante do uso do termo "captura" pelo ministro, uma jornalista questionou, então, se era mandado de "busca e prisão", o que o ministro respondeu: "Exatamente".

Horas depois, o Ministério da Defesa divulgou nota negando que vá solicitar pedidos de detenção coletivas: "O Ministério da Defesa esclarece que a expedição de mandados coletivos tratada como possibilidade na reunião de hoje dos Conselhos de Defesa Nacional e da República refere-se a operações de busca e apreensão - e não de captura, que constitucionalmente só podem ser individuais".

'Criminalização dos pobres'

Para o professor de Direito Constitucional da FGV-SP Roberto Dias, a justificativa usada por Jungmann de que a realidade urbanística das comunidades exige mandados de busca coletiva indica um desrespeito aos direitos dos mais pobres.

"O fato de a gente estar falando de uma favela ou de um grande condomínio de luxo, direito fundamental não se altera. Uma justificativa dessa me parece uma criminalização da pobreza."

A opinião é a mesma do professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Daniel Sarmento. Na sua visão, esses mandados ferem o princípio constitucional da igualdade, já que esses procedimentos jamais ocorrem em áreas ricas.

Ex-presidente do Conselho Penitenciário do Rio, a advogada criminalista Maíra Fernandes afirma que os moradores de favelas já sofrem ações ilegais de revista em suas casas pela Polícia Militar. Seu temor, diz, é que mandados coletivos virem "carta branca para ilegalidades".

"Você não vê ninguém entrar numa residência na zona sul do Rio de Janeiro sem mandado. Mas na favela, a polícia entra mesmo, direto, e vira a casa inteira, às vezes pega coisas dos moradores, sem ter autorização judicial. O medo é essas ações que já acontecem na ilegalidade agora fiquem lastreadas por um mandado."

Mais cedo, questionado por jornalistas, Jungmann negou que os mandados coletivos representem isso. "Não há nenhuma carta branca, nem carta negra, nem carta cinza", disse.

Intervenção x Estado de Defesa

O jurista Ives Gandra, por sua vez, defendeu os mandados de busca coletiva. Na sua visão, "medidas extremas" são necessárias para combater "o crime organizado, espalhado como espécie de guerrilha urbana".

Ele ponderou, no entanto, que para tanto seria necessário que o presidente decretasse Estado de Defesa, medida prevista no artigo 136 da Constituição que suspende alguns direitos individuais, como o direito de reunião e ao sigilo telefônico.

Essa é uma medida ainda mais grave que a intervenção decretada no Rio de Janeiro e só pode ser adotada por 60 dias, com objetivo de preservar ou restabelecer "a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".

No Estado de Defesa, não há previsão de suspensão da inviolabilidade ao domicílio. Por outro lado, fica permitida a "prisão por crime contra o Estado", detenção que deve ser imediatamente comunicada a um juiz para avaliação da sua legalidade.

"O problema é saber os limites da intervenção. Se não levar (a intervenção) como se fosse Estado de Defesa, ele (o interventor) não poderia fazer nada que violentasse direitos e garantias individuais", observou.

"A impressão que eu tenho é que o presidente poderia ter declarado logo de cara um Estado de Defesa, que poderia ser até mais rápido. É muito difícil conseguir qualquer resultado com a intervenção, porque na prática o Exército ficaria com as mesmas limitações da polícia", defendeu.