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Ações de 'novo cangaço' miram R$ 160 milhões e têm 46 mortes em 2021

Criminosos fizeram moradores reféns após atacarem uma agência bancária no centro de Araçatuba (SP) em agosto - Reprodução/Twitter
Criminosos fizeram moradores reféns após atacarem uma agência bancária no centro de Araçatuba (SP) em agosto Imagem: Reprodução/Twitter

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo

02/01/2022 04h00

As quadrilhas especializadas em mega-assaltos a agências bancárias planejaram roubos que miravam um desfalque somado de cerca de R$ 160 milhões em 2021. Mas fracassaram nas principais ações, arrecadando menos de 10% desse valor, segundo levantamento feito pelo UOL com base em dados repassados por fontes ligadas a investigações dos casos.

Especialistas ouvidos pela reportagem citam o monitoramento desses grupos por forças de segurança e o aprimoramento dos sistemas de proteção das instituições financeiras como fatores que impediram rombos maiores. Contudo, alertam para a importância da apuração em intervenções policiais sem sobreviventes, em que há suspeita de fraude processual. Foram 46 mortes em 2021 — 44 delas foram de suspeitos de integrar essas ações, abatidos em confronto com as forças de segurança.

O ataque em Araçatuba (SP), ocorrido na madrugada de 30 de agosto com o uso de fuzis, drones e explosivos, é apontado como emblemático para ilustrar a frustração de um roubo milionário aos moldes do "novo cangaço", prática também conhecida como "domínio de cidades" devido à escalada da violência nos últimos meses.

De acordo com fontes ligadas à polícia, o objetivo da quadrilha era levar R$ 90 milhões de uma central de distribuição de cédulas dentro da agência do Banco do Brasil.

Mas o acionamento de um mecanismo de destruição das notas com lâmina e tinta impediu a arrecadação do dinheiro. A estimativa dos investigadores é que o grupo tenha roubado apenas R$ 2 milhões em dinheiro vivo e R$ 5 milhões em joias.

Novo Cangaço - Arte/ UOL - Arte/ UOL
Imagem: Arte/ UOL

A Polícia Federal já prendeu 32 pessoas por suspeita de participação no crime —15 delas foram detidas em uma ação no dia 16 de dezembro, após mandados expedidos pela 1ª Vara Federal de Araçatuba.

Apontado como um dos chefões do ataque, o ex-militar Ademir Luís Rondon foi incriminado pela ação após a identificação de material genético dele em um veículo responsável pelo armazenamento de armas e explosivos da quadrilha.

Preso pela Polícia Civil em outubro por suspeita de participar de um ataque a um carro-forte em São Carlos (SP), a voz dele foi identificada em áudios captados por interferência de rádio amador na ação de Araçatuba (SP).

Ações do 'novo cangaço' em 2021

Investigações e segurança dos bancos, dizem especialistas

Edson Ramos, membro do conselho do Fórum do Brasileiro de Segurança Pública e professor da Universidade Federal do Pará, disse que houve aprimoramento na atuação das forças de segurança, que passaram a priorizar investigações, deixando a atuação ostensiva em segundo plano.

"Existe uma comunicação envolvendo as instituições financeiras e a própria polícia, facilitando as investigações. E, quando a investigação antecipa a ação, geralmente não há sobreviventes. Esses grupos armados são extremamente perigosos e não estão ali apenas por causa da movimentação financeira. Eles também estão ali para criar um espetáculo e ganhar notoriedade", afirma.

Os roubos foram frustrados neste ano por causa das ações da polícia e dos próprios bancos, que agora têm esses picadores de dinheiro, por exemplo. A tendência é que esse tipo de crime diminua ou até acabe, porque há um gasto elevado para conseguir armas de grosso calibre e preparar uma ação de alto risco e retorno baixo. Com a queda do lucro, a tendência é que esses criminosos migrem para outros crimes."
Rafael Alcadipani, especialista em segurança pública

Professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em administração pública, Alcadipani traça um paralelo entre a ação dessas quadrilhas e aquelas especializadas em sequestros, que aterrorizaram o país entre a década de 1990 e os anos 2000. "Os sequestros começaram a acabar quando a polícia começou a prender os especialistas nesse tipo de crime. A mesma coisa está acontecendo agora com os casos de 'novo cangaço'", compara.

O sistema de segurança das instituições financeiras, que atuam de forma integrada com a polícia, também tiveram papel importante nessas ações, reduzindo drasticamente o prejuízo na ação de Araçatuba, por exemplo.

"Quando conseguiram chegar ao cofre, os criminosos só encontraram papel picado. Não havia mais dinheiro porque o sistema de destruição já tinha sido ativado desde o momento da invasão", explicou o advogado Douglas Prehl, vice-presidente da empresa que desenvolve a tecnologia de inutilização de cédulas nos bancos.

Em nota, a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) disse que as grandes agências possuem centrais de monitoramento em tempo real, com acionamento às autoridades em caso de tentativa de roubo. "Os serviços de segurança são fornecidos por empresas especializadas com autorização de funcionamento expedida pelo Departamento de Polícia Federal", informou em um dos trechos do texto.

Ação mais letal do país gera suspeita de fraude

Uma outra ação foi ainda mais desastrosa para a quadrilha envolvida no crime, que pretendia lucrar R$ 65 milhões em uma central de distribuição do Banco do Brasil no interior de Minas Gerais, segundo a Polícia Civil. Mas a iniciativa foi interrompida quando uma ação policial matou 26 suspeitos em um sítio em Varginha (MG), na madrugada de 31 de outubro, na operação mais letal contra casos do "novo cangaço" no país.

Nenhum policial se feriu. Os agentes disseram ter retirado os suspeitos baleados ainda com vida, informação contestada por especialistas, que cogitam a hipótese de fraude processual. Eles não descartam a possibilidade de desmonte da cena do crime e veem semelhanças com a chacina na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio, em maio deste ano.

Thiago Herdy, colunista do UOL, teve acesso ao áudio de uma funcionária de um posto de saúde de Varginha (MG), que relatou ter visto "corpos amontoados" em carrocerias de caminhonetes, em vez de feridos com alguma chance de atendimento, como registraram os agentes no documento oficial.

"Eram criminosos profissionais ligados a esses núcleos do 'novo cangaço', que poderiam ter contribuído com investigações. O trabalho policial pela busca de informações foi bem feito. Mas a operação foi um desastre", criticou o analista criminal Guaracy Mingardi, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que viu a operação como um fracasso.

"Sem sobrevivente, não dá para saber para onde foram e onde estão os outros comparsas. Geralmente, os pensadores da ação estão só monitorando", complementou Edson Ramos.

O caso motivou um pronunciamento da Human Rights Watch, organização não governamental de defesa dos direitos humanos.

É essencial que a investigação sobre a operação policial seja orientada pela legislação brasileira e parâmetros internacionais sobre prevenção eficaz de execuções extrajudiciais, arbitrárias e sumárias. Esperamos que esta investigação responda se houve ou não a preservação de evidências no local dos fatos, e se os suspeitos morreram neste local. As respostas serão cruciais para determinar se houve abusos de direitos humanos e ilegalidades na conduta policial como fraude processual, ou se as mortes foram resultado de ação policial em legítima defesa."
Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil

As 46 mortes ligadas ao 'novo cangaço'