Sangue no chão e medo de morrer: Vila Cruzeiro após chacina que matou 23
Marcas de sangue em uma estrada de chão e pedaços da lataria de uma moto usada em uma tentativa de fuga ainda marcam o local onde uma chacina deixou ao menos 23 pessoas mortas durante uma operação policial na Vila Cruzeiro, zona norte carioca, no dia 24 de maio.
O massacre, 2º mais letal da história do Rio de Janeiro, fica atrás apenas do ocorrido na favela do Jacarezinho de maio de 2021, com 28 mortes. Além dos vestígios que ainda restam sobre o chão da parte alta da favela, permanecem as lembranças da tragédia e o luto das famílias das vítimas.
Na garupa de um mototaxista, o UOL percorreu o caminho em direção ao trecho de terra batida na área de mata onde os corpos foram encontrados. Nenhuma das vítimas era policial. Unidades de saúde e a PM (Polícia Militar) chegaram a confirmar 26 mortes. Mas a Polícia Civil revisou o número e afirmou que foram 23 —as outras três seriam de um confronto no Morro do Juramento, a 5 km da Vila Cruzeiro.
O percurso da reportagem até local das mortes foi o mesmo usado como rota de fuga de traficantes armados em direção ao Complexo do Alemão em uma megaoperação realizada em novembro de 2010 —as imagens ganharam repercussão internacional na época, como símbolo da retomada de um território até então ocupado pelo crime organizado.
Doze anos depois, elas consolidam a repetição de chacinas em ações policiais no Rio de Janeiro. Em apenas um ano de gestão do governador Cláudio Castro (PL), houve 182 mortes em 40 chacinas no Estado, segundo levantamento obtido pelo UOL —só no combate ao tráfico da Vila Cruzeiro, foram quatro chacinas com 39 assassinatos. O STF (Supremo Tribunal Federal) encaminhou ofício ao governo estadual pedindo esclarecimentos.
Na quarta-feira (1º). Castro negou que tenha ocorrido uma chacina após se reunir em Brasília com o ministro Edson Fachin, relator da ação que obrigou o governo do Rio a elaborar um plano para reduzir a letalidade policial em ações como a da Vila Cruzeiro.
'Os policiais atiraram na gente. Deitei na mata pra não morrer'
O mototaxista que acompanhou o UOL no trajeto revelou ter ido ao local com parentes das vítimas e outros colegas de profissão para ajudar a resgatar os corpos no dia da operação policial. Foi quando disse ter sido surpreendido por tiros. Em seguida, disse ter se escondido na mata com cerca de 20 pessoas. Ele concordou em dar o seu relato sob a condição do anonimato, para evitar represálias.
Já estava tudo na paz. A gente só queria ajudar os familiares a encontrar os mortos pra pelo menos ter um enterro. Aí, os policiais atiraram na gente. Joguei a minha moto no chão e deitei na mata pra não morrer. Só pedia a Deus para não acontecer nada. Mas infelizmente aconteceu"
Ele se referia ao mototaxista Ricardo José da Cruz, 27, que morreu ao ser atingido por um tiro no peito enquanto ajudava nas buscas por corpos. O ativista social Rene Silva compartilhou em seu perfil no Twitter um vídeo em que Ricardo aparece cantando no período em que trabalhava como vendedor ambulante em meio aos carros parados no congestionamento da avenida Brasil.
"Eram muitos mortos. Os corpos estavam espalhados aqui embaixo [o mototaxista apontou para a área de mata]. Foi extermínio mesmo. Os bandidos fugiram para a área de mata e os policiais seguiram atirando. Mas também morreu trabalhador", relata o mototaxista.
Em uma área rural próxima, onde se via criação de porcos e um galpão, o advogado Gilberto Santiago, 37, disse ter encontrado o filho de um amigo ferido por um tiro nas costas, escondido embaixo de uma tábua. Nathan Werneck, 21 anos, foi resgatado mais de seis horas após enviar mensagem por WhatsApp para um amigo com o recado: "Vou morrer, mano".
O UOL voltou ao local e verificou que ainda havia resquícios de sangue por ali. "Ele morreu nos meus braços", relatou Santiago.
'Mataram um trabalhador'
Ao menos 16 dos 23 mortos não tinham mandado de prisão em aberto, segundo o site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Entre eles, Douglas Costa Inácio Donato, 23, ex-militar da Marinha, que era casado e tinha um filho de dois meses. "Mataram um trabalhador", desabafou a diarista Patrícia Costa Conceição, 42, mãe de Douglas.
O estudante João Carlos Arruda Ferreira, de 16 anos, foi morto após ser visto pela última vez justamente em uma manifestação pedindo pelo cessar-fogo na operação. "Meu irmão morreu com facada, não foi de tiro. Tinha 16 anos, o rapaz estudava. Não era bandido. Mas todo mundo na comunidade é tratado como se fosse".
Facadas: "Denúncia que se repete"
O advogado Rodrigo Mondego, da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), disse ter presenciado o momento em que o corpo de um dos mortos foi encontrado com o rosto sujo de pó branco e perfurações compatíveis com facadas.
"A gente tem relatos de moradores que acusam o Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) de matar a facadas desde 2013. É uma denúncia que se repete", relata.
"Alvos são sempre os negros das favelas"
Guilherme Pimentel, ouvidor da Defensoria Pública do Rio, disse ter participado de um pedido de cessar-fogo, não atendido pelos agentes envolvidos na operação. "Há denúncias gravíssimas de violações de direitos humanos, como crimes de execução e tortura, que precisam ser investigadas."
Pimentel relacionou a chacina da Vila Cruzeiro com o massacre do Jacarezinho, embora as ações tenham sido executadas por instituições diferentes.
"No Jacarezinho, foi a Polícia Civil. Dessa vez, foi Polícia Rodoviária Federal e Polícia Militar. Isso demonstra que a violência não está restrita a uma só instituição. Os alvos são sempre os mesmos: os negros das favelas. Há naturalização da violência e da brutalidade contra essas pessoas, como se não fossem dignas de vida", critica.
O que dizem PM e PRF
Em nota, a PM informou que a corregedoria da entidade acompanha as investigações conduzidas pela Polícia Civil para apurar eventuais irregularidades. Já a PRF (Polícia Rodoviária Federal) diz não ver desvios de conduta e monitora as investigações.
Em entrevista coletiva no dia 24 de maio, data da chacina, Uirá do Nascimento Ferreira, comandante do Bope, afirmou que a operação foi planejada há meses, mas ocorreu em "caráter emergencial" e "não tinha o objetivo de cumprir mandados de prisão".
A PRF, no entanto, alegou ter atendido a um pedido de apoio para o cumprimento de mandados. O MPF (Ministério Público Federal) anunciou a abertura de um procedimento investigatório criminal para apurar condutas e possíveis violações cometidas por policiais. O órgão quer saber informações sobre o relatório final da operação e detalhes sobre o cumprimento dos mandados de prisão.
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