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Ataques aéreos dos EUA contêm Estado Islâmico, mas provocam a ira de civis

Menino refugiado curdo sírio come um pão nesta sexta-feira (14) em frente de sua tenda improvisada em uma fábrica vazia na cidade turca de Suruc, próxima da fronteira entre a Síria e a Turquia. As cidades da região estão sofrendo com ataques do grupo extremista Estado Islâmico (EI) desde os meados de setembro e parte da população segue para abrigos em busca de proteção - Osman Orsal/ Reuters
Menino refugiado curdo sírio come um pão nesta sexta-feira (14) em frente de sua tenda improvisada em uma fábrica vazia na cidade turca de Suruc, próxima da fronteira entre a Síria e a Turquia. As cidades da região estão sofrendo com ataques do grupo extremista Estado Islâmico (EI) desde os meados de setembro e parte da população segue para abrigos em busca de proteção Imagem: Osman Orsal/ Reuters

Kareem Fahim

Em Sanliurfa (Turquia)

15/11/2014 00h01

Os ataques aéreos norte-americanos contra a cidade síria de Raqqa, a propalada capital do autoproclamado califado do Estado Islâmico (EI), dispersaram seus combatentes e quebraram o sistema severo que eles impuseram, disseram moradores e visitantes. Mas eles não são gratos aos Estados Unidos.

Em vez disso, eles sugeriram em entrevistas que muitas pessoas estão furiosas com os americanos. Os preços dos alimentos e combustíveis subiram em Raqqa, os apagões são constantes e a ordem agora é ameaçada pela ausência de autoridade.

Apesar de toda sua violência e intolerância com os infiéis, os combatentes do Estado Islâmico ao menos funcionavam como um governo, fornecendo serviços básicos e alguma aparência de estabilidade.

"As pessoas não querem o ataque de um poder externo", disse Khalid Farhan, um morador de Raqqa, durante uma recente viagem à Turquia.

A fúria em Raqqa ressalta as consequências potencialmente desestabilizadoras da campanha militar liderada pelos Estados Unidos, em um lugar onde há pouco desejo de ver o governo sírio ou outros grupos rebeldes voltarem ao poder. A campanha também corre o risco de alienar ainda mais os sírios nas áreas de oposição no norte, que já estavam enfurecidos com o foco estreito do governo Obama de destruir o EI, mas se recusando a responder aos ataques das forças armadas sírias.

Não que os militantes fossem populares em Raqqa, segundo quase uma dúzia de moradores, que falaram em entrevistas na cidade ou do outro lado da fronteira, na Turquia. Mas o EI se tornou um provedor de serviços indispensáveis.

Algumas pessoas em Raqqa disseram ter visto um benefício dos ataques aéreos americanos, que aparentemente acabaram com os bombardeios indiscriminados da força aérea síria. Mas, principalmente, os ataques americanos abalaram "um senso de calma", especialmente entre os muçulmanos sunitas conservadores no norte da Síria, que, apesar de seu desconforto com os militantes, se adaptaram, como disse Hassan Hassan, um analista da Síria baseado em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.


O governo dos militantes do EI em Raqqa contrastava fortemente com o caos que existia antes, quando havia "combates internos entre os rebeldes, tiroteios ou senhores da guerra controlando os campos de petróleo", disse Hassan. Depois que o Estado Islâmico exerceu seu controle, os moradores voltaram a receber seus "direitos", ele disse.

"As pessoas dizem que o EI é o primeiro grupo capaz de levar suas queixas a sério" --por exemplo, arbitrando velhas disputas financeiras e de propriedade, disse Hassan. O grupo também ganhou respeito ao ocasionalmente punir seus próprios membros, até mesmo líderes, que eram acusados de abusos, disseram Hassan e moradores.

Como resultado, "as pessoas começaram a ver os ataques aéreos com suspeita, ou passaram a simpatizar com o EI", disse Hassan.

Refletindo quanto a vida civil na área se tornou entrelaçada com os militantes --que pagavam salários, administravam as escolas e orientavam o trânsito—dez civis foram mortos em um ataque aéreo da coalizão no domingo, que atingiu uma das instalações de petróleo dirigidas pelo EI, onde muitas pessoas encontraram trabalho.

A aceitação do EI no norte da Síria contrasta fortemente com o Iraque, onde a ascensão do grupo é mais contestada e sua resposta é mais brutal. Muitos iraquianos clamam pelo retorno do governo, apesar de sua impopularidade, especialmente nas regiões sunitas.

Em outras regiões da Síria, como a cidade curda de Kobani, as pessoas consideram os ataques aéreos americanos bem-vindos, talvez na esperança de que a cidade retorne à sua experiência de governo autônomo, que se seguiu após a retirada do governo sírio.

Mesmo entre os moradores de Raqqa, é difícil encontrar simpatia pelos militantes, conhecidos por suas punições públicas brutais e por restrições onerosas às vidas e até mesmo prazeres simples. Milhares de pessoas, incluindo as que temiam os militantes do EI, fugiram da cidade e da província ao redor.

Os extremistas mataram jovens ativistas e membros das tribos que se opunham a eles, às vezes em execuções públicas. O EI também instigou divisões na sociedade, recrutando membros dos tribos rurais para dirigir o Estado quando muitos dentre a população urbana de Raqqa se recusaram a cooperar com o grupo.

Aqueles que ficaram para trás passaram a viver com uma barganha desconfortável, sob as regras do EI e aceitando seu domínio. Em troca, muitos eram deixados em paz.

Mahmoud Safrani, 20, um ex-combatente rebelde de uma milícia islâmica que enfrentou o EI, disse que repudiou seus ex-aliados e jurou fidelidade aos antigos rivais. Agora, ele vive mais ou menos feliz em Raqqa, podendo ir e vir da Turquia a trabalho.

"Se você não criar problemas, eles não vêm atrás de você", disse.

Outro morador, Abu Abdullah, 37, um distribuidor de combustível, disse que viu uma mulher receber 30 chibatas das rua, depois que ergueu o véu no seu rosto, por um instante, para enxugar o suor. Ele expressou horror, mas disse que evita qualquer problema.

Na verdade, ele até mesmo decidiu trazer sua família do exílio na Turquia para voltar a viver em Raqqa. O EI parecia especialmente disposto a facilitar o trabalho dos proprietários de negócios e havia espaço para ganhar dinheiro.

Os moradores sem dinheiro, por sua vez, estavam "prontos para trabalhar com demônios", disse Abdullah. E seu plano de negócios--transportar combustível da cidade até as aldeias próximas, trabalhando na lucrativa rede de petróleo dirigida pelo EI-- foi colocado em risco devido aos ataques aéreos, que visaram os campos de petróleo. "As pessoas estão contra a coalizão", disse.

Nas últimas semanas, os combatentes do EI começaram a sumir das ruas de Raqqa.

Muitos seguiram para Kobani e não retornaram. Inicialmente, o EI enviou seus combatentes mais calejados, incluindo jihadistas estrangeiros, para lutar na cidade curda, mas à medida que eram mortos em número cada vez maior, ele também enviou sírios locais que assumiram as vagas de policiais em Raqqa por causa do pacote generoso de benefícios, que em alguns casos incluía um alto salário e um veículo utilitário esportivo.

Entre esses combatentes estava Abu Omar, 28, que disse em uma entrevista recente em Raqqa que foi ordenado a se juntar aos mujahedeen em Ayn al-Islam", usando o nome do EI para Kobani. "Eu me coloquei em uma posição difícil", disse, acrescentando que seria morto caso se recusasse a cumprir a ordem. "Eu não tinha escolha."

Não eram apenas os policiais que estavam se tornando escassos. Outros funcionários municipais, com medo dos ataques aéreos, pararam de trabalhar.

Na companhia elétrica dirigida pelo EI em Raqqa, os engenheiros passaram a não sair de casa, segundo um funcionário de 35 anos que deu apenas seu primeiro nome, Mohammed. Os carros da companhia não podiam se deslocar em segurança pela província, para manter as barragens, cabos elétricos e reparar transformadores, segundo Mohammed.

"Os americanos estão destruindo nossa infraestrutura", disse. "É difícil para o EI fornecer, consertar e manter as redes elétricas na província de Raqqa enquanto aviões e foguetes americanos atacam qualquer posição e qualquer hora.”

A eletricidade está disponível por apenas seis horas em alguns dias, e o preço do gás de cozinha triplicou, afirmou Yasser Awad, 40,pintor. Ele disse que queria partir da Síria com sua família, mas não tinha como.

"Nós só queremos alguém que traga justiça, estabilidade e segurança. Só Deus sabe quem será."