Acusado de matar Marielle teve ajuda da polícia e reabriu bingo clandestino
Resumo da notícia
- Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco, recorreu a policiais para reabrir bingo clandestino
- Relatório da PF e do MP-RJ estava nas mãos da Polícia Civil, que não investigou o caso
- Lessa contou com ajuda de policial preso por corrupção para reaver 79 máquinas caça-níquel
- Inquérito sobre bingo foi devolvido pela Justiça do Rio à Polícia Civil por falhas na investigação
O policial militar aposentado Ronnie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes, recorreu à ajuda de dois delegados e um chefe de investigação da Polícia Civil, preso posteriormente por corrupção, para reabrir seu bingo clandestino localizado na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, e reaver 79 máquinas de caça-níqueis que tinham sido apreendidas.
As conversas aconteceram entre agosto e outubro de 2018. As informações constam em relatório da PF (Polícia Federal) e do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), obtido com exclusividade pelo UOL, e que faz parte do inquérito do Caso Marielle desde março de 2019, quando Lessa foi preso e teve o celular apreendido. O documento traz mensagens de WhatsApp trocadas pelo policial militar aposentado, seus comparsas e policiais civis que deveriam investigá-lo (veja as mensagens no decorrer da reportagem).
As mensagens indicam que Lessa tinha um sócio majoritário na empreitada: o bicheiro Rogério de Andrade. Lessa era segurança do contraventor quando perdeu parte da perna esquerda em um atentado a bomba em 2009, de acordo com investigações da própria Polícia Civil.
O advogado de Andrade, Raphael Mattos, afirmou que seu cliente não conhece Lessa e que o PM aposentado jamais foi seu segurança.
Sem investigação
Mesmo de posse do relatório conjunto da PF e do MP-RJ que apontava Lessa como um dos donos da casa de jogatina, a Polícia Civil fluminense entregou à Justiça um inquérito sobre o caso sem indiciá-lo.
Mais de dois anos depois, a Justiça do Rio devolveu o inquérito para a 16ª DP por falhas na investigação. Nem os policiais militares responsáveis pela apreensão das máquinas caça-níquel tinham sido ouvidos.
Apreensões de máquinas em bingos clandestinos são acompanhadas pelo Juizado Especial Criminal do Tribunal de Justiça. Em geral, os equipamentos seguem para um depósito, segundo a reportagem apurou, e só podem ser destruídas após uma decisão judicial.
O UOL questionou a Polícia Civil onde os equipamentos foram armazenados e o que aconteceu com eles. O órgão respondeu que "não comenta investigações em curso que estão sob sigilo".
A defesa de Lessa não quis comentar as informações contidas no relatório da PF e do MP-RJ.
Fechamento no dia da inauguração
O bingo clandestino Espaço Barra Gold abriu em 24 de julho de 2018, escondido dentro de um restaurante localizado no Quebra-mar da Barra da Tijuca, quatro meses após o assassinato de Marielle e Anderson.
A festa de inauguração ofereceu um festival de frutos do mar e R$ 5.000 em créditos sorteados aos clientes.
Por volta das 19h30, a Polícia Militar atendeu a uma denúncia anônima e se deslocou até o bingo, que foi interditado e as máquinas, confiscadas.
Sete pessoas foram levadas para a 16ª DP, na Barra da Tijuca. Porém, quando encaminhou inquérito à Justiça do Rio de Janeiro, a delegacia não informou quem era cliente e quem era funcionário.
Contato com delegados
Em agosto de 2018, depois de ter as máquinas caça-níqueis apreendidas, Lessa começou a contatar o delegado Cipriano de Oliveira Mello, que chefiava a Delegacia de Defraudações. As mensagens mostram que Lessa buscou ajuda de Cipriano para entrar em contato com a delegada Adriana Belém, titular da 16ª DP.
Lessa e Cipriano se encontraram com Belém em 21 de agosto de 2018 no restaurante Concha Doce, ao lado da delegacia.
Adriana Belém e Cipriano confirmaram o encontro à reportagem, mas deram relatos conflitantes. Ela contou que o delegado acompanhou Lessa na ocasião; ele disse que não esteve no Concha Doce naquele dia, embora tenha enviado uma mensagem de áudio na véspera acertando horário para os dois. "[Ela] marcou com a gente amanhã 11h30, a gente se encontra lá no Concha Doce", disse Cipriano, em áudio enviado a Lessa.
"Não participei deste encontro e nem de qualquer outro. Há um tempo Lessa me procurou porque tinha sido vítima de uma tentativa de roubo em que foi baleado. Queria saber da investigação na 16ª DP. Na ocasião [ele] falou unicamente do roubo ", disse Cipriano ao UOL.
Lessa tinha sido baleado durante uma suposta tentativa de latrocínio, em abril de 2018. O caso também estava sob a investigação da 16ª DP.
Questionado sobre a contradição de seu relato com a versão de Belém, Cipriano disse que esteve no restaurante Concha Doce no dia 21 de agosto de 2018, "mas não para tratar do assunto mencionado".
Cipriano é investigado pela Corregedoria da Polícia Civil por apresentar patrimônio incompatível com sua renda declarada.
Segundo as mensagens, o delegado e Lessa continuaram conversando após o encontro e combinaram de se encontrar para um café. "Daqui a pouco estarei na sua rua se estiver perto vamos tomar um café", disse Lessa a Cipriano, em 30 de agosto de 2018.
Por sua vez, Adriana Belém disse também que Cipriano levou Lessa à delegacia "para saber dessa investigação que acabou vitimando ele, em que acabou baleado".
"Ele pediu ajuda ao Cipriano. Se eu tivesse relação com Lessa, não haveria necessidade de outra pessoa para o levar até lá", afirmou a delegada. Ela comenta que é comum que conversas do tipo aconteçam em um café, não dentro da própria delegacia.
Dois dias depois do encontro com os delegados, Lessa recebeu mensagem de um subordinado que mostrava o bingo clandestino em funcionamento novamente. "Já estamos trabalhando".
Máquinas caça-níqueis
As atenções de Lessa estavam voltadas também para a recuperação das 79 máquinas caça-níqueis apreendidas.
Um mês depois do encontro no Concha Doce, em 21 de setembro de 2018, Lessa escreveu uma mensagem para o policial Jorge Luiz Camilo Alves, chefe do Grupo de Investigação Complementar da 16ª DP.
As conversas seguem nas semanas seguintes, até que os dois marcam de se encontrar pessoalmente em 12 de outubro, outra vez em um restaurante em frente à delegacia. O policial civil trabalhava há anos em delegacias comandadas por Adriana Belém.
O investigador foi preso em 30 de janeiro de 2020, sob acusação de receber propinas de milicianos do chamado Escritório do Crime. Procurado, seu advogado não respondeu aos emails da reportagem. Adriana Belém entregou seu cargo um dia depois da prisão do policial, para, segundo ela, não interferir na "lisura das investigações".
Pelo WhatsApp, Lessa, Camillo Alves e mais um contraventor acertaram detalhes de como um caminhão poderia se aproximar da unidade policial e retirar de lá os equipamentos apreendidos —segundo o MP-RJ, há indícios de que a operação foi bem-sucedida.
Enquanto combinava com Camillo, Lessa manteve um contato avisado de toda a conversa: Leandro de Souza Barbosa, salvo na agenda de seu telefone como "Leandro (R)". De acordo com o Ministério Público, a letra é uma alusão ao bicheiro Rogério de Andrade, para quem Leandro trabalhava. Ambos se referem ao investigador como "amigo".
Lessa acertou com Leandro e o investigador Camillo os detalhes de uma operação que envolveu o deslocamento de caminhões para a delegacia: "Acho melhor somente pessoal da 16 os caminhoneiros; Pois não sabemos quem está lá".
As conversas sugerem que a operação levou dois dias até, enfim, ser concluída em 18 de outubro de 2018. De acordo com as mensagens investigadas pelo Ministério Público, o bingo clandestino na região do quebra-mar continuou em funcionamento depois da batida policial.
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