Assalto a Lessa: as lacunas de uma possível tentativa de queima de arquivo
Resumo da notícia
- Acusado de matar Marielle recebeu tiro durante suposto assalto em 2018
- Crime ocorreu 45 dias após atentado contra a vereadora e seu motorista
- Polícia Civil e MP-RJ concluíram que Lessa foi vítima de um latrocínio
- Policiais ouvidos pelo UOL cogitam tentativa de "queima de arquivo"
- Polícia Civil e MP-RJ não responderam perguntas enviadas pelo UOL
Pouco depois das 11h do dia 27 de abril de 2018, Ronnie Lessa estacionou o carro em frente ao restaurante Varandas, no Quebra-Mar da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Como fazia quase todas as sextas-feiras, o sargento reformado da Polícia Militar iria almoçar com amigos. Um mês e meio antes, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes tinham sido assassinados a tiros. Lessa ainda não era investigado por participação no atentado.
O comerciante Álvaro de Oliveira já esperava o PM dentro do restaurante. Conforme contou à Polícia Civil, viu o amigo chegar e desembarcar do veículo.
Logo depois foi a vez do bombeiro Maxwell Correia, outro convidado do almoço, parar seu carro. Oliveira havia notado também a passagem pela avenida do Pepê, onde se localiza o restaurante, de uma moto pilotada por um homem branco que vestia uma camisa polo vinho.
Oliveira não sabia, mas o motociclista era o assaltante paulista Alessandro Carvalho Neves, 24. Ele estacionou a Honda Titan num quiosque próximo e se aproximou correndo de Ronnie Lessa. Sacou um revólver e anunciou o assalto.
"Perdeu, perdeu!", afirmou Alessandro, de acordo com testemunhas.
Ele tentou pegar o relógio do PM. Lessa se desequilibrou. Desde 2009, quando perdeu parte da perna esquerda em um atentado a bomba, ele usa uma prótese.
Maxwell, que vinha logo atrás, mandou o assaltante largar a arma e sacou a sua. Alessandro respondeu atirando. Acertou Lessa no pescoço e o bombeiro no braço. Maxwell revidou e acertou um tiro nas costas de Alessandro. Mesmo assim ele conseguiu pegar o relógio de Lessa, que havia caído no chão, correr até a moto e fugir.
Assaltante paulista sem crimes no Rio
As informações acima e as que seguem nesta reportagem constam nos autos da ação penal que condenou Alessandro Carvalho Neves a 13 anos e 4 meses de prisão por latrocínio (roubo seguido de morte).
Em sigilo, policiais do Rio afirmaram ao UOL que as circunstâncias do caso são suspeitas e que deveriam levar a uma investigação para averiguar se houve uma tentativa de "queima de arquivo". A documentação do processo mostra que essa possibilidade não foi levada em conta pela Polícia Civil e pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro).
"O duplo latrocínio em exame não ultrapassou a esfera da tentativa. Inegável que o réu efetuou o disparo de arma de fogo contra as vítimas Ronnie e Maxwell com a nítida intenção de matar, posto que as alvejou em área vital", afirmou na sentença o juiz Roberto Brandão, titular da 31ª Vara Criminal do Rio.
Até a data do assalto, não havia registros de que Alessandro havia cometido crimes no Rio de Janeiro. O endereço dele que consta no processo é de Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo.
Sete meses antes, ele havia saído de um presídio no interior paulista após cumprir pena de um ano por roubo. O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) já havia o denunciado também pelo crime de receptação e a Polícia Civil o investigou, anos antes, por associação criminosa.
Nada no processo explica o que Alessandro fazia no Rio de Janeiro em abril de 2018 e se foi realmente o acaso que o fez escolher como vítima um ex-oficial do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e, posteriormente, acusado pelo MP-RJ como o assassino de Marielle e Anderson.
Único projétil da cena do crime sumiu
Após a fuga do assaltante, Ronnie Lessa e Maxwell Correia foram levados a hospitais diferentes.
A bala atingiu Lessa na região cervical e não foi retirada. O PM afirmou à Justiça ter ficado 15 dias internado em um CTI (Centro de Tratamento Intensivo) e que sofre com sequelas do ferimento, como perda da potência da voz.
Alessandro foi encontrado horas depois do assalto no Hospital Municipal Miguel Couto, localizado no Leblon, bairro nobre da zona sul do Rio. Dois amigos de Lessa, que testemunharam o ocorrido, foram levados ao local por agentes da 16ª DP (Barra da Tijuca) e o reconheceram.
A cena do crime não foi periciada. Não se sabe onde estão o revólver e a moto que Alessandro usou no assalto.
O MP-RJ e a defesa pediram perícia no único projétil encontrado no local, mas o material nunca chegou ao Instituto de Criminalística Carlos Éboli, como atestam emails enviados por peritos que constam no processo.
De acordo com a defesa do assaltante, não há como afirmar que a bala alojada no pescoço de Lessa foi disparada por Alessandro, já que não foi feita perícia e havia outra pessoa armada no local, Maxwell.
MP-RJ e Polícia Civil não respondem
Alessandro Carvalho Neves foi sentenciado em primeira instância no dia 26 de março de 2019. Duas semanas antes, Ronnie Lessa e seu amigo, o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, foram presos acusados das mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Em um relatório de inteligência que embasou o pedido de prisão, o Gaeco (Grupo de Especial de Combate ao Crime Organizado) afirmou que Lessa é chefe de uma milícia na Gardênia Azul, zona oeste do Rio.
Maxwell, a outra vítima do assalto, é tido como sócio de Lessa em negócios ilegais e foi alvo de um mandado de busca e apreensão no âmbito das investigações do Caso Marielle.
Ronnie Lessa e seus familiares dizem a interlocutores que acreditam que ele foi vítima de um assalto e não de uma tentativa de assassinato.
O UOL questionou o MP-RJ se o Gaeco se interessou por investigar as circunstâncias do assalto que quase resultou na morte de Ronnie Lessa. Não obteve resposta.
Por sua vez, a Polícia Civil do Rio de Janeiro se limitou a informar o número da ação penal do assalto, o que já era de conhecimento da reportagem. Porém, não respondeu às seguintes perguntas:
- Houve interesse da DH da Capital (Delegacia de Homicídios da Capital) em investigar o que fazia um criminoso paulista no Rio de Janeiro? Sabe-se o que ele fez dias antes do crime?
- Qual foi a arma usada pelo assaltante? Como é possível dizer, com certeza, que foi ele que disparou e atingiu Ronnie Lessa? A 16ª DP sabe explicar onde está o projétil encontrado na cena do crime?
- A DH da Capital se interessou, em algum momento, em interrogar Alessandro Carvalho Neves sobre o que aconteceu no dia 27 de abril de 2018?
- As circunstâncias desse assalto foram investigadas pela DH?
O TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro) confirmou, no começo de novembro, a sentença de primeira instância. Alessandro Carvalho Neves cumpre pena um presídio da região metropolitana do Rio.
A Defensoria Pública informou "que assumiu a defesa do réu em grau de recurso à segunda instância e que não se manifestará a respeito."
Desde que foi preso, Alessandro Carvalho Neves se manteve em silêncio sobre o assalto a Ronnie Lessa.
* Colaboraram Luís Adorno, em São Paulo, e Vinícius Konchinski, em Curitiba.
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