Homicídio, propina e "ameaças": o ex-deputado investigado no caso Marielle
Em 8 março de 1987, um domingo, o político carioca Domingos Inácio Brazão interrompeu sua festa de aniversário de 22 anos para matar a tiros o vizinho Luiz Cláudio Xavier dos Reis.
Começavam naquela data os problemas do ex-deputado (ex-MDB, não mais filiado a um partido político) e conselheiro afastado do TCE-RJ (Tribunal de Contas do Rio de Janeiro) com a Justiça. Ele é citado pela Polícia Federal como um dos possíveis mandantes do atentado que resultou nas mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Sua defesa nega qualquer participação nesse crime.
Documentos judiciais obtidos pelo UOL e relatos de colegas parlamentares revelam a "índole violenta" do investigado, como já o definiu o Ministério Público. Ele chefia um clã cujo reduto eleitoral abrange bairros da zona oeste do Rio dominados por milícias,
"Matei, sim, uma pessoa"
Um churrasco que terminou em morte. Naquele 8 de março, Reis foi à porta da casa de Brazão com um objetivo: acusar um dos irmãos do político de ser amante de sua companheira.
Após a discussão, ele saiu do local na garupa da moto de um amigo pelas ruas dos bairros de Vila Valqueire e Campinho, na zona oeste do Rio. Era perseguido: de dentro de um carro, Domingos disparou várias vezes e acertou pelo menos um tiro na nuca da vítima. O amigo sobreviveu após ser atingido na bochecha.
"Encontravam-se as vítimas em uma motocicleta, quando o réu aproximou-se e, de inopino [de repente], acionou a arma contra as mesmas, impossibilitando-lhes a defesa", lê-se na denúncia do MP sobre o caso.
Quando prestou depoimento à Polícia Civil do Rio pela primeira vez, Brazão negou a autoria do crime. Porém, foi reconhecido por testemunhas e sua prisão preventiva chegou a ser decretada. Em uma segunda ocasião, em dezembro de 1987, alegou legítima defesa.
"Matei, sim, uma pessoa. Foi um marginal que tinha ido à minha rua, na minha casa, no dia do meu aniversário, afrontar a mim e a minha família", ele diria, anos depois, ao comentar o caso em uma sessão da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro).
Naquela época, os integrantes da família Brazão eram conhecidos como "Irmãos Metralha", referência aos vilões dos gibis da Disney.
"A autoridade policial destacou, à época, a índole violenta e perigosa do réu, que constantemente portava arma e se unira a "grileiros" que disputavam a posse das terras na região", afirmou, em relatório sobre o caso datado de agosto de 2002, o então procurador-geral de Justiça José Muiños Pinheiro Filho. Ele é atualmente desembargador do TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).
"Ademais, ameaçara de morte a todos que pudessem delatá-lo, sendo, por isso, inicialmente muito difícil a sua identificação", acrescentou.
Julgamento adiado por 15 anos
O processo do homicídio de Reis nunca foi julgado pelo Tribunal do Júri. Entre 1990 e 1992, o julgamento foi adiado duas vezes. Depois ficou paralisado, sem maiores explicações, por oito anos. No ano 2000, começou a tramitar no TJRJ já que Brazão era deputado estadual.
Dois anos depois, a Corte Especial do TJRJ rejeitou a condenação. "A Justiça me deu razão", disse Brazão.
Contudo, seus problemas judiciais não se resumem a esse caso. Domingos Brazão teve seu nome ligado a um esquema de adulteração de combustíveis, investigado pela PF no começo dos anos 2000.
No âmbito eleitoral, ele chegou a ter seu diploma cassado por abuso de poder econômico pelo TRE (Tribunal Regional Eleitoral). Ele usava seu centro social, em Jacarepaguá, para atrair eleitores. Em julho de 2010, o local foi fechado.
"Eu confio na Justiça do homem e de Deus e estou tranquilo de que todo o nosso processo eleitoral transcorreu na mais absoluta legalidade", afirmou, à época. Ele recorreu e a condenação não chegou a ser aplicada.
Colegas relatam ameaças
Vereadores e deputados estaduais que conviveram com Domingos Brazão contam que ao ser contrariado ou exposto por seus pares, ele costuma se aproximar a ponto de abraçar os interlocutores para fazer ameaças ao pé do ouvido.
Um dos episódios aconteceu com a então deputada estadual Cidinha Campos (PDT), que conta ter ouvido de Domingos uma frase ameaçadora em uma discussão na Alerj: "Nunca matei uma puta, mas tenho vontade de matar", disse Brazão, de acordo com os autos do processo que ela moveu contra o colega que chegou a tramitar no STF (Supremo Tribunal Federal). O caso foi arquivado.
Apesar de contarem com segurança pessoal, parlamentares evitam falar abertamente sobre Brazão e seus irmãos. Um deputado estadual e um vereador ouvidos pela reportagem contam que já foram ameaçados em períodos pré-eleitorais por terem feito panfletagem em redutos dos Brazão em Jacarepaguá.
"Fui levado por um cabo eleitoral a uma comunidade do Recreio dos Bandeirantes sob domínio de milicianos. Lá, um homem se aproximou e disse para meu correligionário que o mataria na próxima vez em que ele levasse outro político à região. Fiquei muito assustado com a atitude. Me identifiquei como deputado, mas o homem disse apenas que lá o deputado era o Brazão. O cabo eleitoral ficou tão assustado que pediu ajuda para tirar a família do bairro", conta o político.
Situação semelhante também foi descrita por um vereador, que foi abordado por homens em motos ao fazer panfletagem na Praça Seca: "Eles se portam como donos das áreas. Lembram os coronéis que dominavam com mão de ferro seus currais eleitorais, sempre protegidos por capangas armados".
Freixo tentou evitar nomeação ao TCE
A situação judicial de Brazão se complicou em 29 de março de 2017, quando quatro conselheiros do TCE-RJ e ele foram presos durante a deflagração da Operação Quinto do Ouro, sob a acusação de recebimento de propinas de empresários para não fiscalizarem obras e uso de verbas públicas do governo do Rio de Janeiro - o processo corre no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Solto posteriormente, o grupo está afastado do tribunal desde então. Há 17 dias, a corte os tornou réus pelos crimes de corrupção e organização criminosa. Brazão nega as acusações.
Dois anos antes, Brazão havia sido escolhido pela Alerj para ocupar uma vaga do TCE-RJ. Ao tomar posse do cargo, por exigência da lei, ele deixou o MDB, partido ao qual era filiado. A indicação foi apadrinhada pelo então presidente da casa legislativa, Jorge Picciani (MDB). O único partido a se posicionar contra foi o PSOL, sigla de Marcelo Freixo e Marielle Franco.
O então deputado estadual Freixo, de quem Marielle foi assessora, ingressou com uma ação na Justiça do Rio para evitar, sem sucesso, a nomeação de Brazão.
Brazão também teve o nome citado por suposto envolvimento com grupos paramilitares no relatório final da CPI das Milícias, realizada em 2008, sob a presidência de Freixo. Marielle trabalhou na comissão parlamentar de inquérito.
Em junho passado, Freixo participou de uma reunião, a pedido de dois delegados da Polícia Civil do Rio, com integrantes do Ministério Público Federal para tratar de uma possível conexão de deputados do MDB com a morte de Marielle. O encontro foi revelado pela revista Veja.
O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz foram presos em março, sob a acusação de serem os executores do atentado. Lessa chegou a ser filiado ao MDB. Até o presente momento, a investigação não apontou os mandantes do crime. Citado na investigação da Polícia Federal como um dos possíveis mandantes do crime, Brazão também é suspeito de participar de ações para atrapalhar a elucidação do caso Marielle.
Brazão nega envolvimento com a morte de Marielle
Em junho do ano passado, Domingos Brazão chegou a prestar depoimento à DH (Delegacia de Homicídios da Capital). Ele negou qualquer relação com a morte de Marielle Franco.
Ele foi acusado publicamente pelo vereador Marcello Sicilliano (PHS-RJ) de tentar incriminá-lo no atentado ao plantar uma falsa testemunha na investigação da Polícia Civil do Rio. Em fevereiro passado, agentes da PF chegaram a cumprir mandados de busca e apreensão na casa do conselheiro afastado, no âmbito do inquérito sobre obstrução do Caso Marielle.
Em pelo menos duas ocasiões, o advogado de Brazão, Ubiratan Guedes, afirmou ao UOL que "seu cliente tem todo o interesse no esclarecimento do crime e colocou à disposição da Justiça seus sigilos bancários, fiscal e telefônico".
O UOL procurou sem sucesso entrar em contato com o ex-deputado para que ele comentasse as ameaças citadas por ex-colegas.
Anos depois da morte de Luiz Claudio Xavier Reis, o repórter Sérgio Ramalho, um dos autores desta reportagem, encontrou o amigo sobrevivente do tiroteio. Com dificuldades de fala decorrentes do tiro que atingiu-lhe a bochecha, ele se assustou ao ouvir o nome Domingos Brazão e se recusou a dar qualquer declaração sobre o ocorrido.
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