Após mais de 40 testes, digital na munição do Caso Marielle não traz pistas
Resumo da notícia
- Cartucho recolhido na cena do crime tem fragmento de impressão digital
- Após série de exames, não é possível identificar quem tocou a munição
- PF criticou em abril maneira como provas foram armazenadas
Mais de vinte meses após o atentado que resultou na morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes a origem do fragmento de impressão digital encontrada na munição recolhida no local do crime permanece desconhecida.
A Polícia Federal (PF) comparou esse material com as digitais de 42 suspeitos e não detectou nenhuma identificação positiva. Em ofício enviado à Justiça do Rio de Janeiro em abril de 2019, a PF apontou erros que teriam sido cometidos no recolhimento e armazenamento da prova pela Polícia Civil do Rio e que explicariam o resultado do exame.
Para peritos consultados pelo UOL é uma tarefa quase impossível identificar autores de crimes por meio de digitais deixadas em cartuchos disparados. Um dos especialistas chegou a aventar a possibilidade da digital pertencer a um dos próprios agentes que recolheu o material (leia mais abaixo).
Nove cartuchos na cena do crime
Policiais militares e civis recolheram nove estojos de bala de calibre 9 milímetros no local do duplo assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorrido no dia 14 de março de 2018 no centro do Rio.
Uma semana depois, peritos da PF encontraram parte de uma impressão digital em um dos cartuchos analisados. Na comparação com o banco de dados da corporação federal, nenhum criminoso foi identificado.
Oito meses depois, em novembro de 2018, a PF fez um novo exame a pedido da Polícia Civil do Rio. A DH da Capital (Delegacia de Homicídios do Rio) enviou para análise as impressões digitais de 42 investigados. Na lista constavam os registros dos seguintes suspeitos, todos eles ligados às milícias do Rio:
- O PM reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, que viriam a ser presos meses depois, acusados de serem os executores do atentado;
- O PM Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, que confessou ter prestado um falso testemunho para incriminar o miliciano Orlando Curicica e o vereador Marcello Sicilliano;
- O major da PM Ronald Paulo Alves Pereira e o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado como os dois chefes do grupo de matadores de aluguel conhecido como Escritório do Crime.
O resultado foi o mesmo do anterior: "A autoria da impressão questionada permanece desconhecida", escreveram no laudo três peritos do núcleo de identificação da PF.
Falhas da Polícia Civil
Cinco meses depois desse segundo exame, a PF apontou falhas que teriam sido cometidas pela Polícia Civil do Rio.
Os peritos federais apontaram os seguintes erros, de acordo reportagem publicada em abril pelo jornal "O Globo": os estojos das balas foram colocados em único saco, o que provocou atrito entre o material, e a tinta verde utilizada pelos peritos do estado do Rio, para marcar os lotes de origem da munição, pode ter apagado outras digitais.
Procurada, a Polícia Civil afirmou que o "caso segue sob sigilo".
Exame impossível
Para Leandro Cerqueira Lima, presidente da Associação Brasileira de Criminalística, o tamanho do cartucho e as condições nas quais eles se encontram após um disparo inviabilizam um exame de impressões digitais.
"Quando um cartucho é disparado, ele é aquecido dentro da arma. Além disso, passa por uma espécie de raspagem no interior do fuzil ou pistola. Esses processos tendem a inutilizar a impressão digital que poderia ser deixada na munição no carregamento da arma."
O perito Lucas Telles, presidente da Fenapericia (Federação Nacional dos Peritos Oficiais de Natureza Criminal) ratificou a ineficiência de um exame de digital de um cartucho disparado. Ele, aliás, diz que não há exemplos de casos solucionados a partir desses exames.
Telles trabalha com exame de balística no Instituto de Criminalística da Polícia Civil do Distrito Federal. Segundo ele, quando um perito avalia um cartucho encontrado numa cena de crime, a principal objetivo é tentar identificar a arma da qual ele saiu.
"Os exames de balísticas são muito bons para identificar a arma do crime", explicou. "Agora, todos os estudos sérios apontam que não é possível recuperar a digital num cartucho disparado".
De acordo com a investigação da Polícia Civil do Rio, a arma usada para matar Marielle e Anderson foi um submetralhadora HK MP5 de calibre 9 mm, usadas pelas elites das forças de segurança pública.
O perito disse ainda que, se há uma digital num cartucho, ele provavelmente foi impressa ali por um policial que pegou o objeto sem luva ou mesmo por alguém que, desavisadamente, tentou colaborar com o trabalho de investigação, mas atrapalhou.
"É comum você chegar na cena de um crime e alguém ter recolhido todos os cartuchos para entregar aos policiais. Isso não deve ser feito. O perito deve encontrar os cartuchos no local em que foram deixados para poder verificar também de onde partiram os tiros", afirma Telles.
Um terceiro perito, que trabalha para a Polícia Federal e não quis se identificar, confirmou à reportagem que é improvável determinar a autoria de um crime por meio de uma digital encontrada num cartucho disparado. Para ele, porém, todos os caminhos devem ser levados em conta numa investigação.
"Um cartucho não é como um vidro, onde existe uma grande área de contato lisa para que a digital fique bem marcada", explicou o perito federal.
De acordo com o laudo produzido pela PF, a impressão encontrada na munição usada para matar Marielle e Anderson permanece disponível para exames futuros.
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