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Caso Marielle

Para o NYT, 'Marielle virou um grito de união em um Brasil polarizado'

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Ernesto Londoño

No Rio de Janeiro

15/03/2019 22h02

A pergunta paira com peso sobre a cidade: "Quem matou Marielle Franco?"

Ela é pintada em grafites em quase todos os bairros, estampada em camisetas e escrita em faixas exibidas em desafio nas manifestações de massa.

Nesta semana, dias antes do aniversário de sua execução, promotores apresentaram uma resposta parcial, acusando dois ex-policiais de cometerem o assassinato. As principais perguntas do caso, inclusive quem ordenou o crime e por quê, continuam sem respostas.

Um ano após a execução, o pedido de justiça para Marielle, uma mulher negra, lésbica e feminista, vereadora do Rio de Janeiro, que foi criada pobre, transformou-se em um grito de união em um país profundamente polarizado, para os que se sentiam representados por ela.

Seu nome e sua imagem tornaram-se a antítese das forças políticas dominantes no Brasil enquanto o presidente de direita, Jair Bolsonaro, se instala no cargo.

Um ex-paraquedista conhecido por fazer comentários ofensivos sobre mulheres, negros e gays, Bolsonaro fez campanha com a promessa de melhorar a segurança com medidas que incluem facilitar a compra de armas e facilitar que a polícia mate suspeitos.

Quem mandou matar Marielle? E mais perguntas sem respostas

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Mas os críticos temem que suas políticas agravem aspectos da violência no Brasil, que inclui um número assustador de pessoas mortas pela polícia, um índice de assassinatos de mulheres que os especialistas consideram alarmante e um ataque sistemático a pessoas homossexuais e transgênero.

A morte de Marielle, que representava vários desses grupos que hoje se sentem ameaçados, chocou e dividiu o Brasil. Mas também injetou um sentido de urgência vital nos movimentos pelos direitos que ela defendia.

Também ajudou a promover as carreiras políticas de mulheres negras, incluindo três que hoje estão na Câmara onde Marielle, até sua morte, era a única.

"Marielle ainda representa, mesmo que só na memória, uma ameaça ao status quo", disse Renata da Silva Souza, sua ex-chefe de gabinete, que foi uma das mulheres negras eleita para a Câmara no ano passado.

"Ela personifica as pessoas que podem ser mortas" com impunidade no Brasil, disse Souza.

Marielle morreu no ano passado na noite de 14 de março, no centro do Rio de Janeiro, quando um atirador disparou várias balas contra o carro em que ela se deslocava após deixar um evento de trabalho.

Ela morreu instantaneamente, juntamente com seu motorista, Anderson Gomes.

Em poucos dias, Marielle Franco, 38, uma estrela política em ascensão de um partido socialista que era pouco conhecida fora dos círculos políticos de sua cidade, tornou-se um símbolo global de resistência à crescente maré conservadora. O que tornou o assassinato especialmente perturbador para muitos brasileiros foi como ela era um fenômeno raro.

Nascida e criada na favela da Maré, um extenso bairro de baixa renda no norte do Rio de Janeiro, Marielle se tornou crítica da brutalidade policial e da negligência do governo pelas áreas pobres da cidade, enquanto seguia um mestrado em políticas públicas.

Depois ela trabalhou durante uma década na equipe de um vereador local, ajudando-o a investigar milícias, os grupos paramilitares fortemente armados, formados por atuais e antigos militares e policiais, antes de fazer uma candidatura bem sucedida a vereadora, em 2016.

A Câmara Municipal estava cheia de bandeiras do orgulho gay e de aplausos quando Marielle fez seu discurso de posse em uma audiência na Prefeitura em fevereiro de 2017, parecendo ao mesmo tempo radiante e um pouco intimidada pela atenção.

Ser negra, manter fortes ligações com a favela onde foi criada e ser aberta sobre seu relacionamento homossexual tornavam Marielle única na política brasileira e um modelo para as pessoas que não se consideram representadas em um sistema dominado por homens brancos.

"Ela era uma inspiração", disse Dani Monteiro, outra vereadora negra eleita após a morte de Marielle. "De repente você não é mais invisível em um espaço onde sempre fomos invisíveis."

Durante toda a sua vida, disse Monteiro, ela se sentiu cercada por pessoas brancas e de pele mais clara que instintivamente relegavam pessoas como ela ao segundo plano.

"Os negros são úteis para servir café ou limpar o chão", disse ela, descrevendo a sensação de exclusão que foi uma constante em sua vida. "Se eles não fizerem isso, são criminosos."

Durante seu período na Câmara, Marielle condenou a decisão do governo federal de colocar militares a cargo da segurança do Estado, e continuou lutando contra a brutalidade da polícia e a presença das milícias no Rio.

Mas colegas e companheiros ativistas dizem que não viram sinais de que seu trabalho político a tivesse colocado sob risco iminente.

Enquanto o choque sobre o assassinato diminuía, investigadores e aliados de Marielle começaram a suspeitar que o crime foi praticado por milicianos.

"As milícias no Rio de Janeiro hoje constituem uma importante estrutura de poder com tentáculos em diferentes esferas do poder", disse Pedro Strozenberg, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Bolsonaro e seus filhos, que também são políticos, ficaram notavelmente silenciosos sobre o crime, o mais chocante assassinato político no Brasil em muitos anos.

Mônica Benício, a companheira de Marielle, que sobreviveu, disse que isso é perturbador, mas não surpreendente.

Esse silêncio, disse ela, é uma parte chave de uma prestação de contas no Brasil que é necessária, embora dolorosa.

"Durante anos vendemos a imagem de cartão-postal de um paraíso, o país do Carnaval, de pessoas alegres e cordiais", disse Benício. "A execução de Marielle, e a eleição do atual presidente, revelaram ao mundo que somos racistas, somos sexistas, misóginos, LGBT-fóbicos."

"Precisamos começar a enfrentar isso", disse ela. "Precisamos começar a desconstruir um sistema político que sempre foi dominado por homens brancos."

Bolsonaro e seus filhos têm sido observados sobre suas perspectivas e ligações com as milícias. O presidente já defendeu no passado as milícias como uma maneira de impor um domínio paralelo, mas com punho de ferro. Ainda no ano passado, ele disse em entrevista a uma rádio brasileira que as áreas controladas por esses grupos paramilitares "não têm violência".

Um dos filhos do presidente, Flávio Bolsonaro, empregou até o ano passado a mulher e a mãe de um ex-policial suspeito de ser um importante membro de milícia.

E nesta semana, quando os dois suspeitos foram presos por ligação com a morte de Marielle, os Bolsonaro viram seus laços com os homens serem analisados, o que aumentou o mal-estar que muitos críticos sentiam com seu governo.

Um dos suspeitos, Ronnie Lessa, morava no condomínio à beira-mar no Rio de Janeiro onde Bolsonaro tem uma casa.

O outro, Elcio Vieira de Queiroz, postou uma foto em sua página no Facebook em que aparece de pé ao lado de Bolsonaro, num abraço amigável.

Policiais também revelaram que uma filha de um dos suspeitos namorou um filho de Bolsonaro.

O presidente disse que não conhecia os homens, e a polícia afirmou que suas ligações com a família Bolsonaro não são relevantes para a investigação.

Diante de um novo governo que eles consideram hostil aos direitos das minorias, ativistas de grupos de que Marielle participava se tornaram mais ousados e desafiadores depois da morte dela.

As mulheres negras que disputaram cargos no Rio depois do assassinato sabiam dos riscos que estavam correndo, segundo Mônica Francisco, outra mulher negra hoje na Câmara de Vereadores. Mas teria sido mais perigoso recuar, disse ela.

"Marielle compreendeu que para continuar viva é necessário ocupar esferas de poder", disse ela. "É irônico, mas verdadeiro."

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