Ataques de Bolsonaro à Justiça seguem agenda de crises do governo
Jair Bolsonaro (PL) concentra críticas e ofensas ao Judiciário ao longo de seu mandato. Desde a redemocratização, nenhum outro presidente direcionou ataques tão fortes aos outros Poderes —mesmo os que sofreram processos de impeachment, como Fernando Collor (à época PRN, hoje PTB) e Dilma Roussef (PT).
A última polêmica é o indulto que Bolsonaro concedeu ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), após o STF (Supremo Tribunal Federal) ter condenado o parlamentar a oito anos e nove meses de prisão por estimular pautas antidemocráticas.
Muitas ameaças e ofensas aos tribunais ou a seus ministros ocorreram em meio a momentos de fraqueza do governo. Por exemplo: o tom do presidente ficou especialmente belicoso durante a instalação da CPI da Covid no Senado Federal, a pedido do STF, no primeiro semestre do ano passado.
Após o início da comissão, Bolsonaro retomou sua luta contra a urna eletrônica e criticou nominalmente os ministros do STF, em especial Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, então também presidente do TSE.
O voto impresso é um tema levantado toda vez que o presidente sente alguma ameaça relacionada aos tribunais, como quando seus filhos entraram para o inquérito de fake news da CPI da Covid, em junho do ano passado.
Veja alguns capítulos deste embate:
Fim da trégua
Junho de 2019
Em junho de 2019 —seis meses após a posse—, Bolsonaro classificou como "completamente equivocada" a decisão da Corte em determinar que casos de agressões contra o público LGBTQIA+ sejam enquadrados como crime de racismo e intensificou a promessa de indicação de um ministro "terrivelmente evangélico". Em resposta, o então ministro Marco Aurélio Mello defendeu a laicidade do Estado.
No mundo real, fora das redes de apoio, analistas viam o discurso como um aceno à base bolsonarista em meio à primeira queda de popularidade (a aprovação havia passado de 35% para 32%).
#HienasdoSTF
Outubro de 2019
Quatro meses depois, o tom subiu. No início do racha com o partido que o elegeu, o PSL (que depois da fusão com o DEM virou União Brasil), o presidente compartilhou em suas redes sociais um vídeo em que um leão ("patriota conservador") é atacado por hienas com os símbolos de diversos partidos, da mídia, da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e do STF.
Bolsonaro apagou o vídeo pouco depois, mas as imagens seguiram sendo compartilhadas por apoiadores com a legenda "#hienasdoSTF". No dia seguinte, o ex-ministro Celso de Mello chamou o presidente de "grosseiro" e disse que seu "atrevimento não tem limites".
Calmaria interessada
Novembro de 2019
No final do primeiro ano de mandato, o presidente fez uma pausa nas cutucadas à Corte. À medida que o julgamento sobre o uso de informações do antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) para investigações de casos de corrupção se aproximava, Bolsonaro evitou falar sobre o Supremo.
Um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), tinha interesse direto no julgamento —a investigação no caso das rachadinhas é baseada em relatórios do Coaf. Com a decisão de que os dados poderiam ser usados, desde que por meio legal, o presidente passou até a elogiar a Corte.
Estímulo aos atos antidemocráticos
Fevereiro de 2020
Com aprovação na casa dos 35%, Bolsonaro voltou a olhar para sua base e decidiu estimular publicamente atos antidemocráticos pró-governo, que tinham como uma das principais pautas o fechamento do STF. Um vídeo compartilhado pelo próprio presidente dizia: "Vamos resgatar nosso poder".
Mais uma vez, houve reação dos ministros. Em seu Twitter, Gilmar Mendes não citou Bolsonaro, mas pediu "respeito entre os três Poderes". Até o então presidente da Corte, Dias Toffoli, com quem tinha boas relações, criticou o apoio.
Atos pró-golpe como cortina para a covid-19
Abril de 2020
O que era estímulo virou ação. No fim de abril de 2020, com a pandemia de covid-19, Bolsonaro não só incentivou como participou de manifestação pró-governo em Brasília. O ato pedia, entre outras coisas, o retorno do AI-5, que concedeu à ditadura militar (1964-1985) o poder de fechar o Congresso. Como reação, o STF autorizou a abertura de investigação desse tipo de manifestações.
No mundo real, o presidente via a pandemia explodir no Brasil, com hospitais lotados e corpos estocados em contêineres, escancarando a falta de coordenação federal para enfrentar a covid.
Reação às denúncias de Moro
Abril de 2020
Foi um mês de crise para o governo, que decidiu descontar no STF. Após a abertura de inquérito para investigar as denúncias do ex-ministro Sergio Moro sobre suposta intervenção na PF (Polícia Federal) e para proteger o filho Flávio, Bolsonaro adotou uma nova maneira de criticar (que dura até hoje): atacar os ministros individual e nominalmente.
Três dias após o STF abrir o inquérito e impedir a indicação de Alexandre Ramagem, hoje na Abin (Agência Brasileira de Inteligência), à direção-geral da PF, Bolsonaro disse que Moraes só chegou à Corte pela amizade com o ex-presidente Michel Temer (MDB).
Ameaças como resposta a inquérito
Maio de 2020
Cada vez que o processo avançava, Bolsonaro ia a público ameaçar a Corte. No dia 22, quando Celso de Mello tirou o sigilo da reunião ministerial em que fala sobre a interferência na PF para ajudar o filho e diz que quer que o povo "se arme", Bolsonaro vai a público dizer que não "vai meter o rabo no meio das pernas".
No mundo real, além da divulgação do vídeo, o Brasil enfrentava a primeira onda da covid —chegou a mais de mil mortes por dia pela doença.
Buscando a viabilidade do seu governo, o presidente, por sua vez, seguiu dando apoio presencial aos atos com pautas antidemocráticas —ele exigia, inclusive, a companhia de ministros para mostrar força.
"Acabou, porra"
Maio e junho de 2020
Ainda em meio à crise gerada pela liberação do vídeo da reunião ministerial, Bolsonaro começou a enfrentar as investigações sobre fake news por apoiadores de seu governo e apelou até a palavrões para encarar o STF e Moraes, à frente do processo.
As coisas têm limite. Ontem foi o último dia e peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar mais poderosas que outros que se coloquem no seu devido lugar, que respeitamos. [...] Não monocraticamente, mas de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra!
Presidente Jair Bolsonaro, em discurso
Estimulados por Bolsonaro, que nem sempre participava, os atos com gritos anti-STF continuaram acontecendo, mesmo com a proibição de aglomeração, ao passo que o próprio presidente falava em "tomar medidas legais" contra a Corte.
STF como muleta na pandemia
Agosto de 2020
Com os indicadores da pandemia ainda em níveis preocupantes e a piora da imagem da administração, Bolsonaro começou a usar o STF como muleta para justificar os problemas do país. O presidente repetiu que a Corte tirou o seu "poder de ação" e que o gerenciamento da saúde pública não era mais responsabilidade sua.
Na verdade, em abril daquele ano, a Corte deu autonomia para que os estados tomassem suas próprias decisões locais de combate à pandemia diante da inação do Ministério da Saúde —como adoção de isolamento social e uso obrigatório de máscaras, por exemplo. A mentira de que ele foi proibido de agir segue sendo usada até hoje.
Medo de CPI por inação na pandemia
Abril de 2021
Nos meses seguintes, as provocações à Corte seguiram, mas em tom mais leve à medida que o STF decidia se ele precisaria depor no caso sobre a interferência na PF pessoalmente ou por escrito.
Curiosamente, o tom voltou a subir quando ele voltou a se sentir alvo. Após Barroso determinar que o Senado abrisse uma CPI para investigar a atuação do governo na pandemia, Bolsonaro disse que faltava "coragem moral" e sobrava "imprópria militância política" ao ministro. "Está previsto na Constituição", respondeu Barroso.
A ofensa, criticada pela oposição e governadores, ajudava a desviar o fato de que abril se tornava o mês mais letal da pandemia no país, sem qualquer plano de organização federal. À época, o Brasil passava pela segunda onda da covid-19, e chegou a ultrapassar 4 mil mortes diárias.
As ameaças seguiram enquanto a CPI avançava no Senado. Primeiro, Bolsonaro disse que o STF "não tem que se meter em tudo". Depois, mais irritado, falou que o Brasil estava "no limite", "um barril de pólvora", e ele ia ter de "tomar providências".
Apesar das ameaças, a CPI foi aprovada no fim de abril.
A saga do voto impresso
Maio de 2021
Pressionado pela CPI da Covid, Bolsonaro voltou a intensificar suas atenções a uma pauta que lhe interessa desde a eleição: o questionamento da idoneidade das eleições e defesa do voto impresso. Em meio a cutucões a Barroso, então presidente do TSE, ele se dirigia ao Congresso, mas sempre com recados aos seus apoiadores.
"Se o parlamento brasileiro promulgar, teremos o voto impresso em 2022. Se vocês promulgarem até o início de outubro deste ano, teremos voto impresso e ninguém passará por cima da decisão do parlamento brasileiro. Chega de sermos atropelados", declarou elevando o tom de voz em discurso sem Brasília.
Com a pandemia ainda matando milhares de pessoas diariamente no Brasil, o voto impresso superou a cloroquina, já datada, e se tornou o novo tema favorito entre os bolsonaristas —tanto que chegaram a aprovar, na Câmara dos Deputados, uma comissão para avaliar a proposta.
As acusações são infundadas. Como o UOL Confere já demonstrou em diversos momentos, as urnas eletrônicas não só são extremamente seguras como também auditáveis, ao contrário do que diz Bolsonaro.
"Sem voto auditável, pode haver convulsão"
Junho de 2021
Uma semana antes de o plenário do STF votar a suspeição de Moro nos casos contra o ex-presidente Lula (PT) na Lava Jato, Bolsonaro começou a fazer ameaças em suas lives.
A anulação dos processos abriria —como abriu— a possibilidade de Lula tornar-se pré-candidato à presidência, como aconteceu. Hoje, o petista lidera as pesquisas de intenção de voto, à frente de Bolsonaro.
Bolsonaro mostrou descontentamento com a possível decisão. Em live, ele afirmou que se Lula ganhar sem voto impresso, "poderá haver convulsão social no Brasil".
"Nosso lado não pode aceitar"
Julho de 2021
Mesmo sem apoio do Congresso, que derrubaria a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) do voto impresso, Bolsonaro manteve o tema em evidência enquanto enfrentava a CPI da Covid. Sem provas, retomou a história, já desmentida, de que o deputado Aécio Neves (PSDB-MG), e não Dilma Rousseff (PT), teria ganhado as eleições de 2014.
Se esse mesmo [sistema] continuar, sem a contagem pública, eles vão ter problema porque algum lado pode não aceitar o resultado. Esse algum lado, obviamente, é o nosso lado. Nós queremos transparência.
Presidente Jair Bolsonaro, em entrevista
Em um dos insultos mais diretos, chegou a chamar Barroso de "idiota" e "imbecil" e voltou a ameaçar as eleições. Barroso respondeu que tentar impedir eleições configura crime de responsabilidade, o que poderia ocorrer em processo de impeachment.
7 de Setembro: "arrebentou a corda"
Agosto e setembro de 2021
Com a aproximação do 7 de Setembro, Bolsonaro não só abraçou as manifestações de apoio a ele no Dia da Independência, organizadas em todo o país, como aderiu ao tom inflamado dos organizadores. Em entrevista ao Canal Rural no fim de agosto, disse que o STF e TSE "têm exagerado" e que a corda "não está arrebentando, arrebentou".
Na Câmara dos Deputados, corria uma série de pedidos de impeachment por sua gestão na pandemia e pelos atos antidemocráticos —todos eles arquivos pelo presidente Arthur Lira (PP-AL), aliado do governo. Com resposta, Bolsonaro seguiu com falas de mão dupla, afirmando, por exemplo, que "tudo tem limite" e que ruptura é alternativa.
No feriado nacional, Bolsonaro participou da passeata em São Paulo e pregou desobediência às decisões do STF, xingando Moraes de "canalha".
Diferente do que muitos bolsonaristas esperavam, no entanto, os atos foram menores do que o esperado, não houve qualquer ruptura institucional e Bolsonaro teve de recuar logo depois.
Tribunais como inimigos em ano eleitoral
Janeiro e fevereiro de 2022
Neste ano, quando deverá concorrer pela reeleição em outubro, o presidente segmentou de forma clara o STF e o TSE como inimigos, questionando abertamente as decisões da Corte em suas lives e dizendo que os ministros "têm candidato".
A apoiadores, afirmou que o Brasil vive "ditadura pelas canetas" e indicou que os ministros poderiam "ter interesse" em torná-lo inelegível e "eleger seu candidato", em mais um referência a Lula, ainda que sem citar o adversário.
Os ministros seguem se pronunciando além dos autos. Em sua despedida da presidência do TSE, Barroso disse que ataques de Bolsonaro são "repetição mambembe" da tentativa de golpe do ex-presidente norte-americano Donald Trump quando perdeu as eleições, no ano passado.
Batalha pelo reduto digital
Março de 2022
No meio de março, o bloqueio do aplicativo de mensagens Telegram por Moraes culminou em novo ataque. A plataforma é um dos principais redutos digitais de Bolsonaro.
"É inadmissível uma decisão dessa magnitude", reclamou o presidente. No dia seguinte, disse que a decisão "não tinha amparo da Constituição".
Caso Silveira: enfrentamento direto
Abril de 2022
O último ato de enfrentamento do presidente ao STF se deu na semana passada, com o perdão ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado a oito anos e nove meses de prisão pela Corte, no dia anterior, por ameaças aos seus ministros e à democracia. O instituto da graça é uma prerrogativa presidencial, mas não deixa de ser visto como uma afronta.
A decisão agitou sua base, revoltou a oposição, fez com que deputados bolsonaristas se movimentassem para tentar anistiar outros apoiadores e ampliou a tensão com o STF. O futuro de Silveira ainda será definido.
No mundo real, a briga acontece no momento em que Bolsonaro está atrás do candidato petista na disputa à presidência e com uma das rejeições mais altas entre os concorrentes. De acordo com o último Datafolha, 55% dos entrevistados não votariam no presidente "de jeito nenhum".
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