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Luiz Felipe Alencastro

A espionagem digital e a ditadura chinesa

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

26/02/2019 18h25

Apoiado nos avanços da inteligência artificial chinesa e em tecnologia importada dos Estados Unidos, o governo de Pequim amplia os instrumentos de fichamento eletrônico de sua população.

No estágio atual, milhões de chineses da zona rural e das cidades já são esquadrinhados pelas novas tecnologias de reconhecimento facial e de constituição de bancos de DNA.

Na prática, o policiamento dos muçulmanos uigures do Xinjiang, no noroeste do país, ilustra o escopo e a dimensão da rede digital chinesa de controle político. 

Formando uma minoria de 8 milhões de indivíduos, os muçulmanos dessa região se sentem discriminados pelo governo de Pequim e muitos deles aspiram ao separatismo.

Para combatê-los, o governo chinês encarcerou em prisões ou "centros de contraterrorismo" cerca de 1 milhão de uigures.

Segundo um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) datado de agosto de 2018, é possível que a China tenha transformado a região "num vasto campo de internamento envolto em segredo".

O governo de Pequim negou as acusações, reconhecendo apenas que "extremistas religiosos", leia-se muçulmanos, foram internados em campos de "reeducação".

Contudo, uma reportagem recente do New York Times revelou que, sob o pretexto fazer exames gratuitos de saúde, o governo chinês tem escaneado o rosto, registrado a voz e coletado DNA de milhões de pessoas e, em particular, dos uigures do Xinjiang.

Agindo dissimuladamente, as autoridades não solicitam autorização dos indivíduos assim fichados, quebrando as normas éticas que limitam este tipo de prática.

A reportagem acrescentou ainda que uma firma americana e um proeminente cientista da Universidade Yale colaboravam com o programa de fichamento digital chinês.

Decerto, há outros abusos desta mesma ordem em outros países, e mesmo nos países democráticos. O Reino Unido, a Itália e a Espanha já infligiram multas milionárias ao Facebook pelas falhas na proteção de dados dos usuários.

Mais ainda, segundo o jornal Washington Post, o próprio governo americano está na fase final de um processo por exposição de dados privados que pode custar alguns bilhões de dólares à firma de Mark Zuckerberg.

Mas o caso chinês se singulariza por dois motivos. O primeiro é estrutural. A China é uma ditadura. Na ausência de imprensa livre e de justiça independente, a gerontocracia do partido comunista chinês elimina os protestos internos e ignora as denúncias externas.

A partir da tecnologia de controle dos muçulmanos uigures nada impede que a vasta maioria da população seja progressivamente fichada pelas autoridades.

O segundo motivo é conjuntural. 

O governo de Pequim enfrenta neste ano adversidades internacionais e domésticas. Ao lado da guerra tarifária com o presidente Donald Trump, a China também enfrenta reservas na União Europeia e em outros países que temem a expansão tecnológica chinesa, como ficou demonstrado no caso da firma Huawei.

No plano interno, a concentração poderes na mão do presidente Xi Jinping, doravante exercendo a Presidência sem limite de mandato, suscitará resistências.

Apesar de a internet ser filtrada pelo governo chinês, Xi Jinping decretou um arrocho nos controles "para assegurar que a jovem geração se torne construtora e herdeira do socialismo".

No dia 4 de maio, será festejado o centenário do movimento estudantil que marcou as primeiras etapas da revolução chinesa.

No dia 1º de outubro, será a vez de comemorar os 70 anos da proclamação da República Popular da China, por Mao Zedong.

Tais festejos podem ser diversamente interpretados e suscitar manifestações inesperadas e hostis a Xi Jinping. Ficará então patente que o programa chinês de bancos de dados de reconhecimento facial e DNA inaugura uma prática autoritária inédita na história.

Luiz Felipe Alencastro