O Nobel da Paz e a glória da Etiópia
A atribuição do prêmio Nobel da Paz ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed foi aplaudida, mas suscitou algumas reservas. A comissão que outorgou o prêmio mencionou a intervenção decisiva de Ahmed no tratado de paz de seu país com a vizinha Eritréia e sua mediação pacificadora no conflito político no Sudão, também fronteiriço à Etiópia. As ressalvas concernem o caráter não conclusivo do tratado com a Eritreia —as fronteiras entre os dois países ainda não estão abertas nem inteiramente demarcadas—, e o voluntarismo político de Abiy Ahmed.
Segundo os especialistas, ele governa com uma pequena equipe, contornando as instituições e enfraquecendo a frágil democracia do país. Ezekiel Gebissa, historiador etíope, declarou ao jornal Libération que o Nobel da Paz para Abiy Ahmed foi precipitado, como o fora também no caso de Barack Obama, que recebeu o mesmo prêmio em 2009, logo no início de seu primeiro mandato: "É mais um estímulo (para o futuro) do que a recompensa por um desempenho", disse Gebissa.
Para entender o que está em jogo, é preciso lembrar que a Etiópia tem uma história multimilenar, pontuada por glórias e dramas.
Sede de uma das mais antigas monarquias de religião cristã, a Etiópia fascinou o Velho Mundo desde sempre, como registram a Bíblia, os textos hebraicos e o Corão ao narrar a fortuna de sua fabulosa soberana, a rainha de Sabá. Em seguida, a Etiópia resistiu durante séculos à expansão árabe, barrando o avanço do Islã na região.
Na Idade Média, circulavam na Europa narrativas sobre um lendário rei-sacerdote cristão cercado pelos muçulmanos, o Preste João. Uma das justificativas ideológicas das primeiras viagens portuguesas no ultramar foi a missão de chegar à Etiópia para socorrer o Preste João contra os árabes. No Canto 4 dos Lusíadas, Camões descreve a saga dos primeiros viajantes portugueses na região: "Sobem à Etiópia, sobre Egito; Que de Cristo lá guarda o santo rito".
Em seguida, o país resistiu aos otomanos. Para completar, em 1896, na batalha de Adua, o então rei da Etiópia, Menelik II, infligiu uma vexaminosa derrota ao exército italiano. Combatendo todas as tentativas de colonização, a Etiópia foi motivo de orgulho para lideranças afro-americanas. Nos Estados Unidos e no Caribe, mas também no Brasil.
Assim, em 1915, rebatendo o racismo científico e a propaganda colonialista sobre a África e os africanos, militantes negros paulistas fundaram "O Menelik - órgão mensal, noticioso, literário e crítico dedicado aos homens de cor", uma das primeiras publicações do Movimento Negro brasileiro. O jornal sublinhava que seu título homenageava "Menelik II, o grande rei da raça preta, falecido em 1913".
Mais tarde, a Itália fascista de Mussolini ocupou a Etiópia entre 1936 e 1941, utilizando bombas de gás asfixiante. Porem, a Etiópia livre, em 1942, assinou em Washington, junto com o Brasil e 24 outras nações aliadas contra o nazi-fascismo, a Declaração das Nações Unidas que fundou a nova ordem internacional.
No último quartel do século 20, algumas jovens nações africanas, como também a Jamaica, se inspiraram nas suas cores de seu pavilhão oficial etíope para criar suas próprias bandeiras nacionais. O fascínio jamaicano pela Etiópia deu ainda lugar ao movimento rastafári popularizado por Bob Marley e o reggae.
Depois da derrubada do imperador autocrata Hailé Selassié (1974), foi instaurada uma sangrenta ditadura comunista que dominou país até 1991. Sacudida por guerras civis e movimento separatistas que culminaram com a independência da Eritreia (1993), a Etiópia, um dos mais antigos países do mundo, quase desapareceu do mapa.
Na realidade, o país é formado por um mosaico de comunidades distintas onde se confrontam várias religiões. Dentre os 108 milhões de habitantes, os dois grupos étnicos principais são os oromos (34% do total), e os amaras 27%. Além do amarico, língua nacional, há 4 outras línguas oficiais regionais e outras espalhadas pelo país. Constituída como república federal, a Etiópia ainda conhece tensões regionais e violências inter-étnicas.
Nomeado primeiro-ministro no ano passado, Abiy Ahmed é o primeiro oromo, etnia majoritária, a assumir a chefia do governo do país. Também em 2018, a diplomata Sahle-Work Zewde foi a primeira mulher a ser eleita pelo Parlamento ao posto (honorífico) de presidente da Etiópia.
Ao assumir cargo de primeiro-ministro, em abril de 2018, Ahmed libertou milhares de presos políticos, retirou os movimentos de oposição das listas de organizações terroristas e abriu os aeroportos aos dissidentes refugiados no exterior.
Dotada de forte planejamento econômico, a Etiópia transita para uma economia industrializada de exportação, graças, entre outros fatores, aos investimentos estrangeiros e, em particular, chineses. Segundo dados do Banco Mundial, a economia da Etiópia vem registrando uma das mais altas médias do planeta, atingindo um crescimento de 9,9% ao ano entre 2007 e 2018.
Dez anos depois do Nobel conferido a Barack Obama, há ainda críticas à sua atuação a serviço da paz na presidência dos Estados Unidos. Talvez, Abiy Ahmed também decepcione quem saudou o Nobel que ele acaba de receber. Porém, o que ele já fez a favor da paz na Etiópia, um país saído de uma ditadura e à beira de uma implosão, é mais meritório do que Obama realizou nos Estados Unidos, democracia poderosa e consolidada. De verdade, a Etiópia merece este Nobel. E Abiy Ahmed também.
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